29 de maio de 2016, um domingo entre o Recreio dos Bandeirantes e o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. “Relaxe pai, é só uma corrida” diz ele, irônico, na saída do seu voo chegando de Paris, do alto dos seus 38 anos. “Ele” é Julien, meu filho. Tínhamos combinado alguns meses atrás de correr juntos a Maratona do Rio, e hoje, ele está aqui, na minha frente, após 10.000 km. O que segue são só algumas sensações, emoções, comentários ou considerações sem pretensão nenhuma, senão a de poder compartilhar com vocês, amigos.
Todo cuidado é pouco
No sofá, fazemos juntos o check-list recomendado. Gosto deste ritual. Ele me pediu para colocar seu número de peito na camisa. Minhas mãos tremem um pouco. Ele cozinhou um pacote inteiro de espaguete, carboidratos obrigatório. Tornamo-nos crianças. Na realidade nunca deixamos de ser. Decidimos de nos deitar cedo, claro. Sei que dormirei mal. Refaço o percurso na minha cabeça; tenho medo que essa maldita tendinite acorde, e que essa injeção de antiinflamatório que fiz há pouco perca seu efeito após alguns quilômetros. Mas Julien não sabe exatamente da seriedade da minha lesão.
O celular nos acorda às 3h30min. Temos que encontrar a van dos Runners Club, que sai às 4h50min do Leblon para o Recreio, local da largada. Os gestos são lentos e automáticos. Falamos pouco. Julien me pergunta a respeito da minha perna direita, respondo sem olhar para ele “Ça va” (tá bem). Não sei se ele acredita.
Antes da largada
Praia do Leblon à noite. Cruzamos uma blitz da Lei Seca, nada a temer senão uma taça de vinho de Bourgogne Côtes de Beaune, que Julien teve a boa ideia de trazer na sua bagagem, aberto ontem para acompanhar o espaguete. Talvez 2 ou 3 taças. Dizem que o vinho é bom para a circulação sanguínea.
Antes da largada
Praia do Leblon à noite. Cruzamos uma blitz da Lei Seca, nada a temer senão uma taça de vinho de Bourgogne Côtes de Beaune, que Julien teve a boa ideia de trazer na sua bagagem, aberto ontem para acompanhar o espaguete. Talvez 2 ou 3 taças. Dizem que o vinho é bom para a circulação sanguínea.
O policial olhou meio perplexo para esses curiosos caras de short e tênis nessa madrugada e nos deixa passar. A turma já estava ali. Abraços. Julien se joga no último banco da van decidido a continuar sua noite, com a cabeça apoiada contra a janela. Ele deve se perguntar o que ele está fazendo aqui as 5h da manhã, de shortinho no friozinho dessa praia brasileira mítica; pouca chance para ele ver um biquíni string. Estou olhando para ele, orgulhoso: dois anos atrás, ele tinha quebrado duas vértebras após cair de uma escada e hoje ele está aqui comigo, para afrontar este desafio.
São quase 6h quando chegamos no Recreio. O sol vai se levantar; caminhamos até a praia. Instante mágico. Julien tem cara de atleta no seu sweet fluo. Ele faz a pose para um selfie, banca o bonitão. Ele diz que quer mijar olhando para os primeiros raios do sol do lado da Barra. Ele faz. Eu também.Desculpe.
Os minutos que seguem parecem intermináveis.
Largando para os 42km
7h30min a largada é dada. Avançamos no meio dos corredores, mas logo nos primeiros cem metros, estamos lado a lado, cotovelo contra cotovelo, como se a gente não quisesse deixar o mínimo de espaço para alguém se infiltrar entre nos dois. Nem pensar. Tínhamos decidido sair tranquilo, em um pace de 6:20/6:30; “primeira parte conservadora” tinha aconselhado Vanessa, a maratonista-coaching da Runners. Mesmo assim a emoção é intensa e meu coração dispara; não entendo e começo a sentir pânico; inicio alguns exercícios respiratórios, disfarçando. Após algumas inspirações profundas, consigo me acalmar e todo volta ao normal.
Maratonistas na altura da Reserva. Foto de Thiago Diz/Divulgação
Foi logo após o retorno, quando a gente entra nessas longas retas em direção à Barra que todo começou. Tomado por uma vontade incrível de falar; era excitação demais, tinha que falar, falar ao vento, ao mar, às ondas, às nuvens que corriam conosco. Toda essa beleza que nos cercava, toda essa felicidade que invadia meu corpo inteiro e me dava asas. Ele, dócil, me olhava, me ouvia e sorria. Eu dizia que era um dos dias mais bonito da minha vida. Gritava sem dizer que o amava, que este reencontro era um momento privilegiado, que ficaria gravado na memória deste asfalto que pisávamos. Dizem que a corrida é uma prova solitária, que você está só com você mesmo. Verdade. Mentira hoje para mim, para nós. Nunca uma corrida foi tão em uníssono. Em coro. Estou correndo com meu filho e isso me impulsiona. Esqueço a dor da minha tendinite, que ontem ainda me fazia mancar. Sinto o vento me levar.
Chegamos na Barra sem perceber. Passando na frente do painel dos 21km, ele me pergunta se estou bem. Sorrio. Sorrio para estar aqui neste exato momento, para ele, para agradecê-lo por estar do meu lado, com o mesmo objetivo de passarmos juntos a linha de chegada. Entramos na curva que conduz à praia de São Conrado como se atravessa um cartão postal : sonhando. Deixei ele curtir a paisagem e parei de falar. No pé da Niemeyer, tive que segurá-lo para que ele não aumentasse o ritmo. Não aguentei, tive que contar o que aconteceu comigo o ano passado quando comecei a disparar a toda vapor na subida até quebrar na altura de Ipanema. Acho que ele entendeu o recado porque ele se acalmou.
E a maratona começa
O visual da subida Niemeyer é simplesmente maravilhoso. Um pensamento triste para os dois que morreram algumas semanas atrás quando a ciclovia desabou. Treinei muito nesta pista hoje interditada. Falo que temos que economizar nossas forças, recuperar na descida que nos conduz até o Leblon. O sol ilumina a praia toda até o Arpoador. Julien sente o efeito do calor porque ele arranca a camisa. Na altura do hotel Ipanema, um amigo meu, francês, nos faz companhia, ele vai ficar até a altura do hotel Windsor. Ajuda sim, mas já as pernas dão sinais de cansaço, e não obedecem mais. Ninguém fala mais. Em Copacabana, Julien está no limite. Falo para ele que se eu já aguentei em 2015, com 63 anos, não tem como ele não aguentar aos 38. Toquei no seu orgulho, porque vejo que ele se recompõe. É o momento mais desagradável, Copacabana não acaba. Temos que chegar rápido na Princesa Isabel e atravessar o túnel e, assim, estaremos salvos, pensei. Estávamos pagando o preço do nosso preparo insuficiente já que minha lesão não me deixou treinar nos dois últimos meses. Eu sabia disso antes de largar, e por isso estava mais fácil aceitar o sofrimento.
A partir da entrada no Aterro, ele me pergunta a cada dois centos metros, onde é a chegada. Respondo que é logo depois da próxima curva. Ele me trata como mentiroso. Eu falo que ele tem razão. Aponto para o Pão de Açúcar entre nós, difícil de não vê-lo. Ele acena com o queixo e seu olhar começa a ficar vazio. Me lembro que ele começou a chorar, de cansaço, de dor e de raiva por certamente não haver cuidado melhor do seu preparo. Mas essas lágrimas não me importam, gosto até delas. Ele pode gritar mesmo. Estamos a alguns centenas de metros da chegada, e nada mais me importa. É terrível dizer isso, talvez porque eu também sofro, talvez mais do que ele, e que através deste sofrimento compartilhado, nunca me senti tão próximo do meu filho.
De repente, na saída da última curva, quando começa a aparecer os tetos das tendas, eu também sinto lágrimas escorregando sozinhas. Elas têm outros motivos, outras razões escondidas lá atrás, no passado quando atropelei a infância dele e nossas vidas se separaram. Hoje, nesta curva, nossas lágrimas se encontram e se confundem em um único canal de alegria, de dores, de emoções retidas, de palavras não ditas, de ausência, de saudade. De amor.
Já os gritos vindos da tenda da Runners soam como um eco de amizade e solidariedade em nossos ouvidos. Estamos passando a linha de chegada após 4h52m abraçados e a cambalear até pegar de uma mão só nossas medalhas. O resto é meio confuso. Tenho uma única certeza, absoluta: concluímos juntos e isto é a única coisa que importa. Não me lembro bem o que ele falou quando nos abraçamos. Sabe aquele abraço bem apertado. Sei que me virei para ele e disse: “É mais do que uma corrida, não é?” Não precisava responder. A resposta nós a conhecíamos. Após quase cinco horas dessa cumplicidade ímpar, o significado dessa frase ia bem além dessa linha traçada no chão. O verdadeiro senso da nossa maratona se lia entre as linhas tortuosas da história de nossas vidas que tinham se reencontrado ao longo dos 42,195 km.
Por isso, talvez, essa maratona tenha, para Julien e eu, um sabor brasileiro com um perfume de felicidade.
Ironia do cronômetro
O acaso quis que eu pousasse meu pé esquerdo antes do de Julien, e, na classificação oficial, cheguei um segundo na frente dele. Bom, nada mais do que justo, pois nada merece respeito.
São quase 6h quando chegamos no Recreio. O sol vai se levantar; caminhamos até a praia. Instante mágico. Julien tem cara de atleta no seu sweet fluo. Ele faz a pose para um selfie, banca o bonitão. Ele diz que quer mijar olhando para os primeiros raios do sol do lado da Barra. Ele faz. Eu também.Desculpe.
Os minutos que seguem parecem intermináveis.
Largando para os 42km
7h30min a largada é dada. Avançamos no meio dos corredores, mas logo nos primeiros cem metros, estamos lado a lado, cotovelo contra cotovelo, como se a gente não quisesse deixar o mínimo de espaço para alguém se infiltrar entre nos dois. Nem pensar. Tínhamos decidido sair tranquilo, em um pace de 6:20/6:30; “primeira parte conservadora” tinha aconselhado Vanessa, a maratonista-coaching da Runners. Mesmo assim a emoção é intensa e meu coração dispara; não entendo e começo a sentir pânico; inicio alguns exercícios respiratórios, disfarçando. Após algumas inspirações profundas, consigo me acalmar e todo volta ao normal.
Maratonistas na altura da Reserva. Foto de Thiago Diz/Divulgação
Foi logo após o retorno, quando a gente entra nessas longas retas em direção à Barra que todo começou. Tomado por uma vontade incrível de falar; era excitação demais, tinha que falar, falar ao vento, ao mar, às ondas, às nuvens que corriam conosco. Toda essa beleza que nos cercava, toda essa felicidade que invadia meu corpo inteiro e me dava asas. Ele, dócil, me olhava, me ouvia e sorria. Eu dizia que era um dos dias mais bonito da minha vida. Gritava sem dizer que o amava, que este reencontro era um momento privilegiado, que ficaria gravado na memória deste asfalto que pisávamos. Dizem que a corrida é uma prova solitária, que você está só com você mesmo. Verdade. Mentira hoje para mim, para nós. Nunca uma corrida foi tão em uníssono. Em coro. Estou correndo com meu filho e isso me impulsiona. Esqueço a dor da minha tendinite, que ontem ainda me fazia mancar. Sinto o vento me levar.
Chegamos na Barra sem perceber. Passando na frente do painel dos 21km, ele me pergunta se estou bem. Sorrio. Sorrio para estar aqui neste exato momento, para ele, para agradecê-lo por estar do meu lado, com o mesmo objetivo de passarmos juntos a linha de chegada. Entramos na curva que conduz à praia de São Conrado como se atravessa um cartão postal : sonhando. Deixei ele curtir a paisagem e parei de falar. No pé da Niemeyer, tive que segurá-lo para que ele não aumentasse o ritmo. Não aguentei, tive que contar o que aconteceu comigo o ano passado quando comecei a disparar a toda vapor na subida até quebrar na altura de Ipanema. Acho que ele entendeu o recado porque ele se acalmou.
E a maratona começa
O visual da subida Niemeyer é simplesmente maravilhoso. Um pensamento triste para os dois que morreram algumas semanas atrás quando a ciclovia desabou. Treinei muito nesta pista hoje interditada. Falo que temos que economizar nossas forças, recuperar na descida que nos conduz até o Leblon. O sol ilumina a praia toda até o Arpoador. Julien sente o efeito do calor porque ele arranca a camisa. Na altura do hotel Ipanema, um amigo meu, francês, nos faz companhia, ele vai ficar até a altura do hotel Windsor. Ajuda sim, mas já as pernas dão sinais de cansaço, e não obedecem mais. Ninguém fala mais. Em Copacabana, Julien está no limite. Falo para ele que se eu já aguentei em 2015, com 63 anos, não tem como ele não aguentar aos 38. Toquei no seu orgulho, porque vejo que ele se recompõe. É o momento mais desagradável, Copacabana não acaba. Temos que chegar rápido na Princesa Isabel e atravessar o túnel e, assim, estaremos salvos, pensei. Estávamos pagando o preço do nosso preparo insuficiente já que minha lesão não me deixou treinar nos dois últimos meses. Eu sabia disso antes de largar, e por isso estava mais fácil aceitar o sofrimento.
A partir da entrada no Aterro, ele me pergunta a cada dois centos metros, onde é a chegada. Respondo que é logo depois da próxima curva. Ele me trata como mentiroso. Eu falo que ele tem razão. Aponto para o Pão de Açúcar entre nós, difícil de não vê-lo. Ele acena com o queixo e seu olhar começa a ficar vazio. Me lembro que ele começou a chorar, de cansaço, de dor e de raiva por certamente não haver cuidado melhor do seu preparo. Mas essas lágrimas não me importam, gosto até delas. Ele pode gritar mesmo. Estamos a alguns centenas de metros da chegada, e nada mais me importa. É terrível dizer isso, talvez porque eu também sofro, talvez mais do que ele, e que através deste sofrimento compartilhado, nunca me senti tão próximo do meu filho.
De repente, na saída da última curva, quando começa a aparecer os tetos das tendas, eu também sinto lágrimas escorregando sozinhas. Elas têm outros motivos, outras razões escondidas lá atrás, no passado quando atropelei a infância dele e nossas vidas se separaram. Hoje, nesta curva, nossas lágrimas se encontram e se confundem em um único canal de alegria, de dores, de emoções retidas, de palavras não ditas, de ausência, de saudade. De amor.
Já os gritos vindos da tenda da Runners soam como um eco de amizade e solidariedade em nossos ouvidos. Estamos passando a linha de chegada após 4h52m abraçados e a cambalear até pegar de uma mão só nossas medalhas. O resto é meio confuso. Tenho uma única certeza, absoluta: concluímos juntos e isto é a única coisa que importa. Não me lembro bem o que ele falou quando nos abraçamos. Sabe aquele abraço bem apertado. Sei que me virei para ele e disse: “É mais do que uma corrida, não é?” Não precisava responder. A resposta nós a conhecíamos. Após quase cinco horas dessa cumplicidade ímpar, o significado dessa frase ia bem além dessa linha traçada no chão. O verdadeiro senso da nossa maratona se lia entre as linhas tortuosas da história de nossas vidas que tinham se reencontrado ao longo dos 42,195 km.
Por isso, talvez, essa maratona tenha, para Julien e eu, um sabor brasileiro com um perfume de felicidade.
Ironia do cronômetro
O acaso quis que eu pousasse meu pé esquerdo antes do de Julien, e, na classificação oficial, cheguei um segundo na frente dele. Bom, nada mais do que justo, pois nada merece respeito.
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. “Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer.”