Espaço do Atleta: A jornada de autoconhecimento de Rodrigo João na TDS da Ultra Trail du Mont Blanc

Rodrigo João na Ultra Trail du Mont Blanc

A Ultra trail du Mont Blanc se tornou um sonho para mim desde que ingressei nas corridas de montanhas. Me inscrevi para concorrer a uma vaga no TDS, prova de 119Km. Tida por muitos como a corrida mais complicada em Mont Blanc, a escolhi por ser mais fácil de se ter sucesso no sorteio.

Desde o resultado, em janeiro deste ano, até o dia da largada, em 23/8, foram milhares de quilômetros percorridos e na maior parte das vezes, “para cima”. Chegamos em Chamonix  com 5 dias de antecedência da largada e fizemos um trabalho de aclimatação, ao meu ver, perfeito: trotes na cidade localizada a 1.000m de altitude  e aproveitamos o turismo dos teleféricos para atingirmos altitudes de até 4.000m.
No dia que antecede a largada da prova acontece a retirada do kit. Tudo muito organizado. A retirada é feita em um enorme galpão onde se passa por diversas e rigorosas checagens e seções. Materiais obrigatórios são checados,  um chip é afixado na mochila de hidratação e uma pulseira indicando sua prova é colocada em seu pulso. Com tudo na mão, é hora de retornar ao apartamento e arrumar o material para o grande dia.
Largada do TDS da UTMB 2016
Sim, a logística é bem complexa. Passamos a tarde inteira arrumando (ou tentando!!!) o material obrigatório na mochila, alimentação, drop bags, etc…. Quando colocamos a cabeça no travesseiro  eram quase meia noite e deveríamos acordar as 2 da manhã para pegar o ônibus que a organização oferece para nos levar a cidade de largada da prova: Courmayeur, na Itália.
A viagem é relativamente curta e a espera dentro de uma área fechada e isolada do frio. A largada é impactante e o início da realização do meu sonho. Com a trilha sonora de “Piratas do Caribe”, milhares de corredores partem para uma grande viagem. As ruas estreitas de Courmayeur são tomadas e os metros iniciais são  de uma  lenta caminhada cumprimentando todos aqueles que ali estão às 6 horas da manhã nos aplaudindo e incentivando.
Tinha em mente manter um ritmo tranquilo e conservador. Muitos amigos, que já haviam feito a prova, me alertaram que a prova se iniciava no Km 51. Os primeiros 12km são de uma interminável subida para atingirmos o primeiro cume da prova e iniciarmos a primeira descida. Já tinha em mente fazer as descidas sem forçar, pois pelo que tinha ouvido, eram longas e técnicas. Logo no início, por volta do Km 13 já imprimia meu ritmo e colei em um corredor, que não deu passagem e estávamos em um single track. Errei ao me aproximar tanto dele. Em uma curva ele saltou uma pedra… Como vinha muito perto não deu t empo e levei um tombo muito feio, machucando demais minha mão direita, que  ficou toda esfolada e logo inchou. A grande preocupação, além da dificuldade de segurar o bastão, era chegar em um posto de controle. A equipe médica veio ver o estado da minha mão e poderiam me tirar da prova.
Ali começava a minha prova mental. No primeiro posto a preocupação foi lavar a mão machucada de uma forma que não chamasse a atenção, além de me alimentar e, principalmente, hidratar. O calor já era intenso e castigava os corredores. Fui mantendo o ritmo planejado e buscando chegar ao Km 51 (“onde a prova iria realmente se iniciar”. Próximo à cidade, onde chegaríamos a este marco e encontraríamos nosso apoio – durante os 119km teríamos dois pontos para ter apoio pessoal. Nosso amigo Rafael Aquino, que correria o CCC dois dias depois, fez esta função.
A corrida começou a mudar para mim. Vínhamos de uma descida muito longa e sob um forte calor. Comecei a sentir um enjoo forte e não conseguia me alimentar. Acredito que possa ter sido uma insolação, pois até então vinha me alimentando e hidratando bem. A última coisa sólida ingerida tinha sido há umas 2 horas atrás. Cheguei no posto preocupado e pensando seriamente em não continuar. Tal decisão vinha sendo construída desde que me veio à cabeça o e-mail que a organização enviou no dia anterior, onde pedia aos  atletas que não saíssem do posto de controle se não estivessem 100%.


Começaria uma subida muito forte, com 2000m de ascensão, e o próximo posto se encontrava a 16km. Ou parava ali ou apenas no próximo posto. Minha amiga Maria chegou no posto e falei que ia parar. Não poderia arriscar. Ela tentou me animar.Logo em seguida chegou minha esposa Nadjala.Ambas falaram para eu não desistir. Já estava parado ali há quase 1 hora e não conseguia comer e beber nada. Tomei um sal de frutas. Não melhorava. Pedi que ambas seguissem, que se melhorasse iria continuar. Elas conversaram e Nadjala resolveu esperar um pouco e seguir comigo. Ficamos mais algum tempo parados. Tomei um pouco de sopa e ao sinal de uma pequena melhora resolvemos seguir.
A subida era muito dura. A cada 100m meu batimento cardíaco disparava e o calor me consumia. Buscava abrigo embaixo das árvores em busca de diminuir minha temperatura corporal. A subida foi muita lenta. Ao chegarmos em um grande muro, pensei: chegamos ao topo, chegamos ao Forte!!! Ledo engano. Olhando para frente víamos um Forte no alto de uma montanha e apenas pequenos pontos em movimento e chegando na construção. O corpo não respondia. O enjoo aumentava, mas fomos bem devagar e chegamos lá.
O tempo de corte da prova também se aproximava. Pedi para minha esposa seguir em frente. Eu me arrastaria até o próximo posto de controle e abandonaria a prova. Ela não aceitava meu pedido, mas após alguns minutos a convenci e ela seguiu. Ela estava muito bem!!!
Ali começava minha jornada de auto conhecimento. Fui me arrastando pelas montanhas. Sentava, tirava a mochila e apreciava a vista espetacular. Tudo para me recompor e chegar no posto de controle e para, enfim, parar.
No alto da última subida começava para mim a descida mais técnica e perigosa da prova. Tínhamos um paredão de pedra com algumas cordas para auxiliar a descida. Cheguei ali e a noite começava a cair. O paramédico me perguntou se estava bem e respondi prontament que sim. Desci com muito cuidado. Ao final da descida liguei a headlamp e continuei a jornada em busca do refúgio. Na minha cabeça já começava a formular as frases em inglês para explicar e solicitar minha retirada da prova.
Chegando na tenda de controle, entrei rápido, pois o enjoo estava muito forte e pensei que iria vomitar. Eram cerca de 6/7 horas sem me alimentar. Busquei um cantinho em um espaço lotado de corredores. Na primeira brecha tirei minha mochila, deitei e fechei os olhos. O enjoo não melhorava. Tirei o celular e comecei ver as mensagens de amigos do Brasil e do mundo. Como estava desapontado em decepcioná-los. Muitos comentavam que deveria ter acontecido algo, pois meu rendimento tinha despencado.
Sem pensar duas vezes mandei uma mensagem, via whatsup, para um grupo de amigos falando que estava abandonando a prova no Km 70, mas que estava tudo bem e mandaria notícias mais tarde. Apertei o botão de enviar, guardei o celular e voltei a deitar e fechar os olhos. Só esperava o momento de comunicar minha desistência.
Neste momento, outro fato mudou o rumo desta história. Ouço uma voz forte me chamando: Rodrigo!! Rodrigo!! O que aconteceu? Era o amigo Bruno Seabra, que acabara de chegar ao posto. Expliquei que estava mal e iria parar. Ele me falou que pararia ali também. Combinamos de esperar o ônibus que levaria os desistentes de volta a Chamonix. Eram cerca de 22h15m e o ônibus sairia às 0h30m. Conversa vai, conversa vem, ele tentava ainda me convencer a continuar, mas a decisão estava tomada: iríamos parar.
Quando eram 23h15m entra na tenda outro brasileiro, conhecido do Bruno: Marcelo Veigantes. Este atleta mudou o desenrolar da minha corrida. Ele havia passado muito mal, foi atendido e agora se sentia muito melhor. Tentava convencer o Bruno a continuar e eu só observando a conversa. O Bruno virou para o Marcelo e falou que não iria continuar, mas pediu que me convencesse a seguir. Percebi neste momento que poderia tentar dar um pouco mais. O próximo posto era 8km adiante. Falei que se o Marcelo fosse tranquilo iria tentar. Ele me convenceu e decidimos seguir.
Já eram 23h20m e o corte era às  0h. Neste ponto tínhamos direito a uma drop bag, onde coloquei roupa reserva para trocar, meia seca e um cinto com minha alimentação a partir dali. Fiquei horas arrumando tudo no dia anterior. Vocês sabem o que eu fiz com a sacola? Nem abri. Tomei, ou melhor, empurrei goela abaixo um prato de sopa e alguns pedaços de salame. Devolvemos as sacolas e partimos.
Para minha surpresa comecei a me sentir forte fizemos os 8 km muito bem. Chegamos no controle e partimos para o próximo posto. Eram 11km, mas um trecho com mais subidas. Era o meio da madrugada e o mal estar voltou com tudo. No meio de uma subida pedi ao Marcelo para parar um pouco. Ele não ouviu.Só via sua imagem se afastando. Não tinha forças. O enjoo era forte. Busquei uma pedra e sentei para tentar me recompor. Só observava as luzes em zigue zague subindo a montanha. Não podia parar. Fui bem devagar, passo após passo, até  topo da montanha. Neste ponto, o Marcelo estava me esperando preocupado, pois não tinha escutado meu pedido. Falei do meu estado e que não conseguiria seguir. Ele falou que estávamos perto do posto de controle e que deveríamos seguir até lá.
Nadjala e Maria na largada da UTMB 2016
Quando avistei a entrada da tenda, só pensava em arrancar minha mochila e encerrar ali minha jornada. Sentei, tirei a mochila, agradeci ao Marcelo e falei que ali era o término da viagem para mim. Ele tentou me convencer, mas diante da minha recusa, nos despedimos e ele seguiu. Mas uma olhada no celular, as mensagens me enchiam de vontade de continuar, mas não tinha mais condições. Durante a noite me sentia fraco e estava tropeçando direto. A prova estava se tornando perigosa para mim. O enjoo estava forte neste momento. Peguei o mapa de altimetria da prova que levava pendurado na mochila. Observei que o próximo controle era 10km à frente e o percurso era só de descida. Pensei em tentar tomar uma sopa, comer uns salames e descer bem.
Descer bem? Sim. Precisava recuperar minha confiança e chegar lá embaixo com a mente e corpo fortes para encarar a temida subida do Km 100. A descida era a mais tranquila da prova. Muita estrada de terra, cascalho , grama. Comi algo, coloquei a mochila, fechei os bastões e parti para a descida. O enjoo ainda estava lá, mas havia melhorado. Fiz o trecho muito bem. Quando cheguei no posto, o dia tinha acabado de amanhecer e minha preocupação era comer, tirar os tênis (os pés doíam demais!!!) e seguir para subida!!
Rodrigo e Nadjala em um posto de controle da UTMB 2016
Saí do posto por volta de 7h. Comecei a subida contínua, mas nada de outro mundo. Descemos em um vale para, aí sim, nos depararmos com a imagem mais impactante da prova: um paredão rochoso com um enorme caminho em ziguezague que levava ao topo de uma montanha enorme. Olhava para o alto e só via pontos se locomovendo. Sentei, tirei a mochila, peguei os pães que ainda tinha e fiz minha refeição pré-subida. Iniciei a ascensão lenta e progressivamente com meu bastão e só parei no topo. A felicidade tomou conta de mim, mas a concentração neste momento triplicou. Sabia que faltavam cerca de 17km para o final. Seriam quase 100% de descidas. Mas não podia facilitar para que o mal estar voltasse ou a desconcentração provocasse algum acidente.
Comecei a descer. Chegando na cidade onde se localizava o último controle, pegamos um longo trecho de descida forte em asfalto. Os pés doíam tanto que não conseguia correr. Usava os bastões para frear um pouco a descida e aliviar o atrito dos pés com o asfalto. Chegando na cidade, encontro o amigo Francisco Porto tirando fotos e me incentivando. Entro no posto. Fecho os bastões, como rapidamente e saio. Eram os 8km finais até a tão sonhada linha de chegada.
O sol já voltava a castigar como no dia anterior. Eram cerca de 29h de prova e tinha perdido a noção do tempo. Pegamos uma trilha dentro de um parque onde vários atletas que correriam as provas do dia seguinte treinavam. Alguns profissionais davam força e parabenizavam os atletas que se arrastavam em direção ao final. Faltando 2km entramos na rua principal de Chamonix.
Nesse momento se iniciou o momento que mais me emocionou. Entrei na cidade com mais de 30 horas de prova e as ruas estavam cheias. Todos aplaudindo. Crianças faziam um corredor com suas mãos estendidas em busca de um simples toque. Famílias que se encontravam dentro de restaurantes e bares saíam e nos saudavam: Allez, Allez, Bravo, Bravo!!! Não queria que aquele momento terminasse.
Faltando 200m, as placas de publicidade indicavam o caminho e eu dei uma pequena errada. Todos gritaram e me colocaram no rumo certo. A reta final. Ao fundo, aquele pórtico gigante e uma linda igreja por detrás. Um, dois, três, quatro segundos… O grito de euforia e cruzo a meta!!! Não acreditava!!! Depois de toda aquela epopeia, tinha conseguido terminar a prova.
Chegada de Rodrigo no TDS da UTMB 2016
Procurava minha esposa e minha amiga… Recebi o colete de finisher da prova. Sim… A premiação desta prova não é uma medalha, mas um lindo colete!!! Ouço um grito!! Eram minha esposa e nossa amiga!! Elas haviam terminado super bem!! Nos abraçamos e ficamos revivendo toda nossa jornada nestes oito meses de preparação e na prova.
Rodrigo e Nadjala com o colete de finisher da TDS da UTMB 2016
Estava feito!! Gostaria de agradecer demais a minha amiga Maria, minha esposa Nadjala e os amigos Bruno e Marcelo, que não me deixaram desistir nos momentos de maior fraqueza e me carregaram até a linha de chegada. Meu muito obrigado !! Agora é o momento de curtir, descansar muito o corpo e planejar a próxima meta!!! Até breve!!!”
Rodrigo João

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Sobre Iúri Totti 1379 Artigos
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. "Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer."

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