Para falar da Maratona de Buenos Aires de 2017 eu preciso falar da Maratona de Buenos Aires de 2013, quando a minha estória com a distância começou. Muita gente sabe que sofri demais para terminar naquela oportunidade e ao cruzar a linha de chegada precisei de ajuda na tenda médica, acabei desacordado e com um quadro de desidratação.
Ao despertar, ao lado de outros corredores que tinham sintomas bem mais leves que o meu, eu só me lembro de sentir cãibras terríveis, as mais doloridas que já tive na vida. Eu pedia aos médicos que me ajudassem a fazer aquelas contrações pelo menos diminuírem, mas a equipei mal dava atenção, parecia dizer “fez bobagem e agora quer que a gente resolva seu problema?! Se vira aí.”
Eu havia combinado com a Bete, minha esposa, que iria terminar a prova e voltaria ao quilômetro 41 para cruzarmos juntos a linha de chegada. Ela terminou a maratona, não me viu e passou a me procurar, até me encontrar no posto médico. Vendo que não era algo tão simples, foi buscar o Cláudio Castilho, meu treinador. Aí os argentinos explicaram melhor o que estava acontecendo. Depois de acabar de me recuperar na maca e ainda sentindo as pernas muito doloridas pelas cãibras, fui liberado para voltar ao hotel e depois ao Brasil.
Capriotti com a medalha da Maratona de Buenos Aires 2013Essa experiência sofrida em Buenos Aires nunca saiu da minha cabeça. Isso não me fazia bem. Prometi que voltaria um dia para consertar o erro que cometi. A falha foi minha. Naquele ciclo de treino tive uma fratura por estresse no terceiro metatarso do pé esquerdo faltando 1 mês para a prova e não pude treinar neste período. Imagine correr uma maratona e ficar sem correr nos 30 dias anteriores.
Na véspera da maratona, o Cláudio me orientou a sair conservador e crescer na segunda parte. Mas fiz exatamente o oposto, larguei sentando a bota, me sentindo bem – claro, 1 mês sem correr, eu estava sobrando. Para piorar, naquele domingo uma combinação meteorológica foi fatal. Largamos com 18 graus de temperatura e umidade relativa do ar em torno de 85%. O sol apareceu, esquentou e a mistura transformou a atmosfera em uma sauna e deu no que deu. Por isso tudo, eu precisava consertar o erro. Não imaginei que seria tão cedo, mas as circunstâncias me levaram de volta a Buenos Aires 4 anos depois.
Em 2016, na maratona de Nova York, fechei em 3h35m correndo sem pressão e curtindo a prova. Fiquei a 5 minutos do índice cheio para Boston e a 10 minutos do que realmente se torna necessário. Eu nunca sonhei em correr a maratona de Boston, mas aquele tempo mexeu comigo e me proporcionaria um ótimo desafio em 2017, o de tentar baixar 10 minutos um tempo que já era bom para a minha faixa etária. Então eu defini que iria buscar a marca. Inicialmente isto deveria acontecer em Florianópolis, mas dois fatores me obrigaram a desistir. O primeiro foi a falta de garantia de homologação do tempo, caso eu conseguisse – Florianópolis teve este ano sua primeira edição e talvez não tenha dado tempo de chancelar os protocolos necessários junto aos órgãos reguladores do Atletismo – e o segundo foi uma sucessão de gripe, rinite, sinusite, que me impediu de treinar corretamente por 45 dias.
Florianópolis aconteceu em agosto, não daria tempo de ajustar tudo. Com isso, me lembrei da conta a ser ajustada com Buenos Aires e então resolvi colocar o plano em ação.
Vinha em um bom ritmo de treino, rodando para tentar chegar com a marca chave: 3h25m. Porém, os treinos não estavam tão naturais quanto os de Nova York no ano passado. Terminava os longos exausto, as rodagens não estavam fluindo naturalmente, mas eu estava no jogo. Até que no dia 9 de setembro, no décimo segundo quilômetro do longo mais importante do ciclo, o de 35K, senti uma contratura na panturrilha. Foram 10 dias parado e depois mais 10 dias de reinserção no treinamento para evitar que a lesão retornasse. Porém, perdi dois longos essenciais e isso me deixou preocupado. O máximo que havia feito era um 32K, o que não deixa de ser bom, mas é no 35 que você ganha confiança, fortalece sua cabeça para o que virá pela frente.
Eu funciono dessa maneira: se treinei, fiz direito o que era necessário, ótimo, ganho segurança. Caso contrário, fico com reservas para colocar os planos em ação, viro conservador. Mas não desisto.
Para acabar de fechar esta sequência de notícias ruins, minha composição corporal estava pior do que para o ciclo de Nova York. O peso estava semelhante, mas com menos massa magra e mais gordura, o que talvez explicasse, em parte, a minha fadiga no final dos longos.
Essa combinação toda me deixou um pouco frustrado. Faltava tão pouco tempo e as coisas não estavam se encaixando. Dez dias antes da maratona, passei pelo Care Club para fazer um teste de lactato. Os treinos dizem muito o que você vai fazer na prova, mas como eu havia fechado o último mês com treinos quebrados, achei melhor ganhar um parâmetro da ciência para o que poderia fazer em terras portenhas. O exame apontou que eu conseguiria fechar a maratona em segurança correndo entre 3h30 e 3h36 minutos os 42K. O professor Gerson Leite e o Gustavo Magliocca foram categóricos ao afirmar que sim, era muito possível fechar com este tempo. Mas minha cabeça não acreditava naquilo. Comecei a martelar 3h40 para cruzar a linha de chegada. Boston começava a ficar para trás e meu objetivo seria terminar bem Buenos Aires.
Na Meia de Sampa, no dia 8 de outubro, último longo antes de Buenos Aires fechei em 1h40 cravado. Terminei inteiro e com sobra. Isso me deu uma animada. Porém, quando eu lembrava que havia feito apenas um longo de 32K, entrava em parafuso.
Viajar com o Murilo, meu filho, ajudou a tirar um pouco do foco nos números. Nos dias anteriores andamos muito pela capital Argentina e isso facilitou os últimos dois treinos bem leves na cidade. Sentia o corpo pronto para correr.
Porém, a noite da sexta-feira feira, 13, foi mesmo de terror para mim. Peguei no sono e acordei logo depois em pânico. Estava com medo de correr. Sim, medo. O mesmo medo que você tem de perder o emprego, ser assaltado, ficar doente. O medo, sentimento comum a todo ser humano, havia tomado conta de mim há pouco mais de 24 horas da largada. Como jornalista, estou cansado de ver colegas minimizando e ridicularizando o medo que atletas profissionais sentem. Pejorativamente são taxados de “amarelão”, aquele cara que treme todo diante do desafio.
Atletas profissionais são de carne e osso, têm o direito de sentir medo como qualquer outra pessoa. A diferença é que em países desenvolvidos esses atletas têm um bom suporte e respeito e isso no Brasil é visto, muitas vezes, como covardia. Estou bem longe de ser um profissional. Aliás, sou um atleta recreacional esforçado, nada além disso. Não tenho suporte psicológico e nem estrutura de primeiro mundo, mas busco ler, me informar, estudar e aprender.
Passei a noite de sexta para sábado sem dormir e me borrando todo.
Meu maior temor era passar mal novamente em Buenos Aires e aquele filme da minha chegada cambaleante e as dores na tenda médica não saía da minha cabeça. Às 7 da manhã, feito um zumbi, pulei da cama e resolvi virar o jogo. Não era admissível que alguém que faz as coisas certas iria tombar diante do desafio. Estabeleci dar um choque na minha cabeça. Mentalizei cada quilômetro do percurso e me imaginei correndo bem e feliz. Tirei o peso e o medo do pensamento e passei a falar comigo mesmo palavras positivas e que me passavam a sensação de vitória. Sentei na cama e fiz uma oração. Relaxei e eliminei pensamentos e palavras negativas. Passei o sábado em paz, feliz, confiante e com sentimento de força. Caí na cama na véspera tranquilo e dormi como uma pedra, acordei revigorado e motivado.
Traçar a estratégia da prova não foi difícil. Tinha números e tinha os meus treinos feitos. O desejo de ir a Boston estava gritando, mas eu não conseguia vislumbrar como rodar a 4m55 por quilômetro. Decidi que iria repetir o que fiz em Nova York ano passado: rodar a 5 por quilômetro até onde desse e depois ver o que aconteceria. Expliquei isso ao Claudio e ele concordou, apesar de acreditar que eu tinha reserva para ir um pouco além. Trocar ideias com o treinador é muito bom, especialmente quando você e o treinador têm conteúdo, podem dividir experiências, sentimentos, isso é muito bom, acredite. Outra coisa que me deixou preocupado foi a temperatura. A previsão era de algo parecido com aquilo que tínhamos em 2013, largada com 14 graus e subida da temperatura até os 22.
Acredito que a organização de Buenos Aires deveria pensar em duas mudanças importantes. Inverter as datas das provas de 21 e 42K. A maratona em setembro e a meia em outubro. Dificilmente se corre em outubro com temperaturas abaixo dos 14 graus em Buenos Aires. Em setembro a chance disso acontecer é maior. Quem quer índice para Berlim, por exemplo, às vezes 2 ou 3 graus podem significar alguns minutos a mais. A outra mudança seria uma inversão do percurso. A primeira metade deveria acontecer onde hoje ocorre os últimos 21K. A região do Porto é árida e sem público, iniciando por ali a temperatura está mais amigável e a ausência de expectadores ainda não incomoda. E depois, finalizando pela atual primeira parte, há mais sombra e mais gente nas amplas avenidas portenhas.
Alinhei logo atrás do pelotão de elite e a energia dos dez mil corredores é contagiante. Largada às 7 em ponto e lá vou eu fazendo de tudo pra me segurar e não deixar a ansiedade me empurrar abaixo dos 5 por quilômetro. Então visualizo o marcador de ritmo e lá estava o grupo dos 5 por quilômetro. Me juntei a eles e segui tranquilo, estava rodando fácil, absolutamente tranquilo e confortável. O bom de você ir nesses grupos é que não vai errar na mão, é bem preciso. O argentino que carregava a bandeirinha, o marcador de ritmo, era um figura e ainda dava pra dar umas risadas. Mas eu estava concentrado nas respostas do meu corpo e desfrutando da paisagem. Houve pequenas mudanças no percurso que deixaram a prova mais reta e consequentemente mais rápida também.
Essas mudanças foram necessárias por conta de obras pesadas que estão sendo realizadas no centro da cidade e na região do Porto.
A passagem pela meia aconteceu com 1h46m e eu estava redondo, inteiro. Foi ali que Boston voltou martelando à minha mente. O projeto todo começou para isso, mudou no final para uma chegada feliz e saudável, mas ali percebi que seria possível tentar. Abandonei o grupo e comecei a rodar a 4m57, 4m55 e até 4m50.
Eu trabalhei a cabeça para iniciar o duelo com o corpo a partir dos 32K, afinal esta havia sido minha maior distância no longo. Passei no 32 e o corpo continuava respondendo bem e eu acelerando. Então esperei pelo urso no 35. E ele não veio. Eu estava meio surpreso com aquilo, mas seguia rodando já com média de 4m57 total, precisava tirar mais um pouco nos últimos 7K. Nessa hora o sol já castigava e a temperatura lá em cima, uns 20 graus com sensação térmica mais elevada, 22, 23 graus.
Botei a cabeça em duas chegadas, a de Buenos Aires e a de Boston. Me imaginei cruzando as duas linhas e segui forte até o quilômetro 40. Aí o urso chegou com toda sua família. Despencou nas costas, nas pernas e onde mais pudesse se apoderar do meu corpo. Por mais força que eu fizesse, as duas últimas parciais foram de 5m30 por quilômetro. Mas, diferentemente de 2013, quando não me lembro de absolutamente nada do 38 em diante, dessa vez registrei cada metro do percurso.
Capriotti com a medalha da Maratona de Buenos Aires 2017O primeiro objetivo, de chegar sorrindo e encontrar o Murilo na linha final estava garantido. Ir a Boston, não daria. Mas nem tudo é em vão. Sabia que meu recorde pessoal cairia, queria um sub 3h30 e foi isso que tentei até o fim, mas também bateu na trave. O resumo disso é que ganhei um novo recorde na distância – 3h30m42s – e fiquei a 5 minutos do índice para Boston. Sigo confiante que estarei lá um dia.
Acredito que se tivesse finalizado meus treinos sem a lesão e corresse uma prova no hemisfério norte, com temperatura mais próxima dos 10, 12 graus, teria conseguido esses 5 minutos no tempo final.
Longe de mim reclamar ou lamentar. Aprendi muito nos últimos meses. Aprendi, principalmente, que a cabeça é tão – ou mais – importante que o corpo. Baixei um tempo treinando menos e pior do que no ano passado e quase deixei que o medo estragasse tudo.
O medo é necessário porque muitas vezes o excesso de confiança é tão prejudicial quanto o terror, mas saber dosar isso é que é o segredo e eu consegui.
Espero que este relato sirva de exemplo para você que está se preparando para um desafio. Seja esportivo, pessoal ou profissional. Não deixe o medo te dominar, seja mais forte e procure encontrar o ponto de equilíbrio nesta equação para você também comemorar conquistas na sua vida.
Já estou planejando o objetivo de 2018 e gostaria que você também colocasse em pratica uma nova distância, um tempo menor, uma prova na trilha, ou ir à Capri Run no dia 1º de janeiro às 7 da manhã!
Coma bem, corra bem, viva bem.
Ricardo Capriotti
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. “Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer.”