Eliud, o senhor do tempo!

Eliud Kipchoge sorri ao quebrar mais uma vez o recorde mundial da maratona em Berlim. (Divulgação)
Eliud Kipchoge sorri ao quebrar mais uma vez o recorde mundial da maratona em Berlim. (Divulgação)

Por Lauter Nogueira*

O que mais escrever sobre Eliud Kipchoge?  

O que falar dele que ainda não tenha sido dito? 

Há muito o que se falar e escrever sobre este operário virtuoso das longas distâncias. Ele, a cada temporada, nos municia com mais conteúdo, mais histórias, mais números e mais emoção. A cada maratona vencida, a cada recorde quebrado, brotam do chão que ele pisou mais e mais artigos, crônicas, vídeos, fotos e novos admiradores!

Kipchoge é, hoje, uma unanimidade no esporte mundial. Nenhum outro atleta, no momento, é tão “número 1” quanto ele.

Sua carreira internacional inicia, aos 18 anos, no Campeonato Mundial de Atletismo de 2003, em Paris, quando, numa final inesquecível, vence os dois grandes nomes do atletismo de fundo na época: o marroquino Hicham El Gerrouj e seu atual grande rival e amigo Kenenisa Bekele, da Etiópia.

Naquela noite, após acompanhar, praticamente sem fôlego, cada uma das 12 voltas e meia, e ver a vitória de Kipchoge acontecer com uma diferença de centésimos de segundo, deixando sem fala (e também desconcertado) o até então imbatível El Gerrouj, tido na época como o mais veloz de todos os fundistas, eu ajeitei meus óculos no rosto e pensei com meus botões: esse moleque vai longe!

E foi!

Antes de dar continuidade à árdua tentativa de tentar explicar o inexplicável, eu gostaria de contar uma historinha simpática, que aconteceu comigo há quase dois anos,. Ela e pode medir, ou dar uma ideia do que foi este recorde recém quebrado por ele, novamente, trazendo as métricas esportivas para um “caso” do cotidiano de nossas vidas comuns de simples mortais:

Saia eu de um enfadonho almoço de trabalho, em um simpático restaurante, em frente à praia, lá no Pontal do Recreio. Quem é do Rio de Janeiro conhece a principal característica deste bucólico e lindo local: é distante de tudo!

Bem, sigamos. Por conta de ter repetido uma sobremesa deliciosa, acabei me atrasando um pouco para pegar um voo para São Paulo, no Aeroporto Santos Dumont, lá do outro lado do mundo! Atravessei a avenida da praia de forma suicida, buscando um carro num dos muitos aplicativos disponíveis. Ao chegar, são e salvo, no calçadão, consegui um carro que estava até perto. Mas, o que mais me chamou a atenção foi a distância até meu destino que o app me informou: exatos 42 quilômetros. Alguns puristas hão de torcer o nariz pela ausência de precisão nestes dados. E onde estão os 195 metros restantes?

Às favas, os puristas!

Entrei no carro e notei mais detidamente as informações da minha longa viagem. Neste momento, confesso que pirei: as métricas do aplicativo, me informavam simplesmente que, além da distância cabalística de 42 quilômetros, eu levaria 2 horas e 2 minutos! Esse cruzamento de dados ligou meus alertas e me fazia iniciar uma especial jornada Rio adentro: percorrer a distância da Maratona em um tempo pouco acima do recorde mundial (na época ele era de Kipchoge mesmo, apenas 2 horas 1 minuto e 39 segundos).

E lá fomos nós, rasgando aquela reta quase sem fim na Reserva ecológica da Barra, que ousa separar o mar das pequenas e belas lagoas e canais, até chegarmos à Barra propriamente dita, enfeitada por aquele enorme muro de prédios e condomínios, já vislumbrando a Pedra da Gávea e outros lindos acidentes geográficos que me surgiam, de forma sequencial.  

Por falar em acidente, enquanto nos arrastávamos lentamente pela adorável Avenida Niemayer, tivemos o macabro privilégio de acompanhar o resgate de um rapaz de dentro das ferragens de um retorcido veículo que o estrago da colisão me impedia de descobrir a marca. Vítima salva, trânsito voltando a fluir e tempo continuando a passar.

Tento, ao “mergulhar” da Niemayer dentro do Leblon, calcular em que parte da Maratona estamos e, o mais importante, em que ritmo seguimos! Não consigo. 

Ao sair de Ipanema e dar de cara com o Posto 6, em Copacabana, me lembro de Belchior e tento cantarolar Paralelas (…Copacabana, esta semana o mar sou eu…). Desisto! Como é perversa a juventude do meu coração!

Ai de ti, Copacabana. O para e anda da Atlântica me exaspera, afinal, tenho muito a perder: além de tentar não perder meu voo, tenho que baixar a marca de Kipchoge nos 42km! Sigo firme, tenso, mas firme!

Princesa Isabel, enfim deixo a Princesinha do Mar para trás e encaro a “boca banguela e escancarada” da Enseada de Botafogo, conforme cantou Caetano ao lembrar de Claude Lévi-Strauss, milênios atrás. Olho para o cronômetro, digo, o relógio, e começo a temer pelo recorde mundial e pela ida a Sampa. Mas, a partir do Morro da Viúva, o trânsito volta a fluir, e meu sangue também. Já vislumbro uma aproximação meio desengonçada de um 737 lento e inseguro, tentando chegar à cabeceira sem tocar a cauda na suja água da velha baía. Agora falta pouco, algum tumulto perto da linha de chegada, travestida de saguão de embarque. 

Freada brusca, porta escancarada e telefone na mão. Antes de buscar meu app com o check-in feito, dou uma conferida no cronometro do celular, e lá está o resultado do duelo: 2 horas, 1 minuto e 30 segundos! Acabei de quebrar o recorde mundial de Eliud Kipchoge, em parcos 9 segundos!!! 

Sorrio e aceno para a multidão que me aguardava, nas cercanias do Portão de Brandemburgo, e agora me aplaude em êxtase! 

Quase não tenho tempo para comemorar e dar entrevistas, meu embarque está quase encerrado, grita a moça insensível, que me aponta o portão (e não é o de Brandemburgo, é o de número 12!).

Me acomodo apertado em meu assento, olho em volta e me conformo com a dura realidade, meio desapontado: pelo menos não perdi o voo! 

Durante o voo, sigo pensando na “corrida” de 42 quilômetros que fiz, e na que Kipchoge meses antes, fez, na Berlim real! Chego a desconcertante conclusão:

Esse cara não é desse planeta! Mas o recorde de 2 horas, 1 minuto e 30 segundos é meu (e do hábil motorista de aplicativo, meu fiel escudeiro neste duelo). 

Neste domingo (25), num costume de mais de 20 anos, no último fim de semana de todo setembro, acordo no meio da madrugada pra assistir minha velha conhecida Maratona de Berlim.

Mais uma vez vi um extraterrestre travestido de humano vencer e de novo quebrar o recorde mundial. Cruzar a linha de chegada e escancarar aquele sorriso quase ingênuo de lagarto (obrigado, João Ubaldo), e juro, acredite, piscar o olho para mim.  

Com o seu tempo de 2 horas 1 minuto e 9 segundos, o atleta Eliud Kipchoge acaba de tirar de mim o recorde mundial da maratona. Eu e o bravo motorista Joel saudamos o novo! Eliud, o senhor do tempo, mais uma vez mostra ao mundo que não existe tempo perdido, ele é apenas nosso fiel parceiro, até a linha de chegada.

Voltando à realidade concreta dos números, dos fatos e da história, peço que resgatemos uma informação por mim plantada lá em cima, no segundo parágrafo: 

Kipchoge surgiu para o mundo dos esportes numa noite abafada de 31 de agosto, no Stade de France, Paris, na final dos 5 mil metros do Campeonato Mundial de Atletismo. Ele simplesmente, aos 18 anos de idade, vence a prova de forma eletrizante, com a espetacular marca de 12 minutos e 52 segundos. E este não foi o seu melhor tempo para esta distância. No ano seguinte, em Roma, ele vence uma prova com o tempo de 12 minutos e 46 segundos, já com 19 anos. Conquistou algumas medalhas em campeonatos mundiais e Jogos Olímpicos. E se deu por satisfeito, objetivo orgânico alcançado.

A partir daí, ele e seu treinador e mentor, Patrick Sang (um dos melhores corredores de 3 mil com obstáculos do mundo), dobram a distância-alvo, o foco passa a ser os 10 mil metros rasos. O objetivo nunca escondido era chegar à maratona com o organismo apto a correr, quase confortavelmente, a 2m50s/2m55s por quilômetro.

Kipchoge aceita o desafio das 25 voltas, e encara firme os 10 mil metros. Corre poucas vezes esta prova, mas o objetivo orgânico é alcançado: consegue correr para 26 minutos e 49 segundos, em 2007. Mostrando que seus limiares orgânicos amadurecem na medida certa para o objetivo final: o recorde mundial da MARATONA.

Bem, o resto… o resto faz parte da história! Depois de entrar e vencer em algumas provas de cross-country e meia maratona, Kipchoge inicia sua jornada maratona adentro.

Eliud Kipchoge e seu mestre Patrick Sang mostraram para o mundo o caminho ideal para criar maratonistas de recordes! Inclusive criar superatletas que, enfim, superem a marca mais emblemática ainda não alcançada: quebrar a barreira das duas horas na Maratona.

Kipchoge já conseguiu correr A DISTÂNCIA DE UMA MARATONA abaixo das duas horas, num evento promocional, onde várias regras oficiais foram quebradas. Mas, mesmo assim, ele mostrou que seu corpo está quase apto ao passo final. O recorde mundial da Maratona em menos de 2 horas. Ele terá que acontecer numa prova oficial, de verdade, cumprindo todas as normas oficiais. Deve ser lá, em Berlim no ano que vem, onde ele se diz sentir em casa. Além de ser um dos percursos mais rápidos do mundo, junto a Valência e Dubai, mas com o diferencial de que seus organizadores não medem esforços, dentro das normas do esporte, para que Berlim seja a cidade dos recordes caídos! Este é seu objetivo número 1.

Outro objetivo que Kipchoge irá perseguir será terminar sua jornada brilhante, exatamente onde ela começou: em Paris, 21 anos depois! 

Provavelmente, Eliud Kipchoge  irá se despedir do mundo do esporte, buscando sua tríplice coroa, o inédito e impensável tricampeonato olímpico na Maratona, em Paris 2024! Torçamos, pois! 

Só o tempo, esse companheiro tirano, dirá! 

*Lauter Nogueira é treinador, com participação em três olimpíadas (2000, 2012 e 2016), e foi comentarista de atletismo do Grupo Globo por 25 anos

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Sobre Iúri Totti 1379 Artigos
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. "Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer."