Se a corrida é o esporte mais democrático que existe, afinal só se precisa de um tênis e, às vezes, nem isso pra se praticar, o Revezamento Volta à Ilha, com certeza, é a prova mais democrática que conheço. Na mesma equipe você pode juntar o cara que só corre no asfalto, o que gosta de plano, o trail runner, o que gosta de subida só no asfalto, o que gosta disso tudo junto, o que só corre na areia, os mais lentos e os mais rápidos. E TODOS vão curtir, superar seus limites, se divertir e, o mais importante , aprender que a corrida também é um esporte de equipe. Afinal. o insucesso de um pode significar o de toda uma equipe.
Fazia tanto tempo que não corria esta prova. Tinha esquecido disso tudo e de quão essa prova é legal. Isso tudo em um lugar especial e de paisagens e praias de tirar o fôlego.
A princípio, esse ano minha equipe, a ML Mix Run 159, era composta por nove atletas. Dois amigos de longa data (Félix e Fadul), uma dupla de mãe e filha (Lilian e Isabella), outra dupla de mãe e filha (Valeria e Bárbara) e o namorado Bernardo (que até o dia da corrida só conhecia a namorada e a “sogra”), a (Lu) e eu. As idades variavam entre 26 a 59 e os paces de 7m/km a 4m30s/km nos 10Km. Como equalizar tudo isso?
Equipe da ML Mix Run 159 na van durante o Revezamento Volta à Ilha
Como a prova é dividida em 18 trechos de terrenos, graus de dificuldade e distâncias variadas, a intenção era colocar os mais experientes nos mais longos e duros e os menos nos menores e mais fáceis. Cada um correria dois ou três trechos e eu faria o tal do “Morro Maldito”, que de maldito não tem nada e que, na minha opinião, perdeu o posto de “o mais difícil” para o trecho 7. Só que na última hora tivemos duas baixas (eu e a Valéria). Como resolver isso? Simples, jogar mais responsabilidade nas costas de todos e ver no que ia dar. Nosso objetivo que era simplesmente terminar a prova, sem ser cortado, pois cada categoria tem um tempo para cumprir a prova, parecia ainda mais distante.
Aí começa a cair a ficha de que cada um tem que fazer o seu melhor em benefício da equipe, mas junto com isso vem o medo de não conseguir. Prejudicar a equipe e você começa a ver que essa prova tem tudo para dar errado. Será?!!!
Trechos redivididos, todos sabendo o que vão correr, vamos nessa. Na entrega dos kits você conversa com o time, tranquiliza todo mundo, fala que tudo vai acabar bem e deixa claro que todos estamos no mesmo barco (até a Valéria que mesmo machucada viajou, ajudou a fazer as compras do que ia ser levado na van e não satisfeita ainda foi junto).
Nossa largada era às 5h30m de sábado. Acordamos por volta das 4h para tomar café e colocar tudo na van: água, comida, frutas, isotônico, refrigerante e cerveja para quem tivesse terminado o seu último trecho (afinal também queremos nos divertir). Pusemos o número da equipe 159 na van e na moto que vão fazer o nosso transporte. Tudo pronto para irmos para o ponto de largada, ainda há tempo de uma última preleção onde o assunto é “Vamos fazer o melhor, mas sem correr o risco de “quebrar” e prejudicar o ritmo pré-definido ou até não chegar”.
Ainda era noite, quando a Lilian, primeira a correr, largou e fechou seu primeiro trecho de 7,2km abaixo do tempo previsto, entregando a pulseira para a Isabella, que partiu pra 4kms. Ela fez o combinado e entregou para o Fadul, que antes de largar me perguntou “quanto tenho que fazer nesses 8,3km pra que tenhamos um certo conforto, sem me prejudicar pros trechos que ainda vou correr?” Ele ainda tinha um trecho de 5,2km de areia, trilha e areia. Falei para ele fazer uma média de 5m3s/Km e ele cravou, entregando para Lu, que também fez exatamente o combinado nos 8km, pois ela ainda teria mais um trecho bem duro no meio do dia e fecharia o revezamento. Depois dela veio o Bernardo, garoto novo, que voou nos 5,1km, fazendo melhor do que o esperado, apesar de saber que ainda teria dois trechos pela frente. Depois veio a Bárbara para seus 4.7km e entregou para o Félix.
Aí começava o trecho mais duro da prova, com uma trilha bastante técnica e dura em termos de altimetria de 10,4km. Nessa hora, o calor começava a dar o ar da graça, o trânsito ficava mais pesado por causa das pessoas indo para as praias. Percebemos que dali pra frente a coisa ia ficar mais complicada. Começava então o segundo trecho de cada atleta. Logo depois que Fadul terminou o dele, me chamou no canto e falou “me empolguei e fui muito forte. Estou morto. Só vai dar para fazer o meu último trecho de 15km no final da prova, Se você precisar, não vou conseguir substituir ninguém”. Nisso a Isabella tava correndo um trecho de 4,7km de areia, trilha e areia e entregando para o Bernardo, que faria os 8,4km do trecho 10 de asfalto, dunas, trilha e estrada de terra. Logo que chegou ele me perguntou: “Estou correndo no Sul ou no Nordeste??? Que calor é esse?!” Tomou água, isotônico e quando entrou na van me falou: “ainda bem que fiz esse trecho e não troquei com a Bárbara. Que percurso irado!!!”
Dos trechos 10 ao 14, todos são considerados muito difíceis. Lilian e Lu tiveram duas paradas duras pela frente e capricharam. Enquanto isso, a Bárbara me chamou no canto e falou: “Quero correr mais! O Bernardo está com o joelho doendo e acha que não consegue correr um trecho de 7,7km de areia fofa. Coloca ele no meu trecho de 4,9km e eu faço o dele, mesmo tendo que dobrar com o meu outro de 9,3km. Prefiro correr 17km de areia dura, fofa e asfalto direto do que fracionar”. Fechado e vamos nessa para a “parte final” e com trechos mais longos da prova. Os 4,9km do Bernardo, 17km da Bárbara, 16,4km do Félix, 15,2km do Fadul, até chegarmos no último trecho da Lu sem sermos cortados.
Como o trânsito estava pesado para a Praia da Joaquina, mandamos o Bernardo de moto para a transição, pois a Lu, que estava correndo, já tinha passado a van. Pedimos ao motoqueiro para pegá-la e nos encontrar no caminho para a transição da Bárbara. Mas o Bernardo foi mais rápido e mesmo mandando a Bárbara de moto, quando ela chegou o Bernardo já tinha terminado. Acabamos perdendo alguns minutos. Bárbara largou para a percurso dobrado e fomos encontrar ela e o Bernardo na próxima transição, pois, apesar de saber que ela dobraria, queríamos vê-la passar para incentivá-la. Foi a melhor coisa que fizemos, pois como a areia estava muito fofa, inclinada e com a maré alta, seu tênis ficou muito molhado e pesado. Ela pediu pra trocar de tênis. A Valéria correu no carro pegou um tênis seco e entregou à ela. Como o trecho seguinte ainda era de areia , falei pra ela ir com o tênis nas mão e só colocar no final da praia. Lá foi ela e entramos na van para encontrá-la no próximo ponto, onde ela passaria a pulseira para o Félix. Chegando lá, encontramos com nosso outro time. Aproveitamos para trocar informações com o Vagner e conversei com o Félix sobre o tempo que ele teria que fazer o “Morro Maldito”, pois agora, com a chegada dos trechos mais longos e duros, estávamos mais perto da linha de corte.
Esse tempo ia variar de acordo com o horário que a Bárbara chegasse, mas provavelmente se ele fechasse em 2 horas o trecho de 16,4kms com uma boa subida, teríamos tempo suficiente para o Fadul fazer os 15,3km de plano. Quando a Barbara chegou, ele partiu e fui conversar com o Fadul para ver o tempo que ele teria para chegarmos ao último posto sem sermos cortados, caso o Felix fechasse em 2 horas. Se isso acontecesse, sobrariam 1h33m para ele. Um pace de 5m49s/km seria mais do que suficiente para ele. Só que nada podia dar errado. E não deu, pois o Félix chegou muito cansado, mas entregando com 1h56m o seu trecho, o que nos deu mais 4 minutos de margem para o Fadul, que largou sabendo exatamente o que tinha que fazer. Sabia e fez muito melhor “até uma determinada hora” . Estava bem e fazendo 5m30s/km. Mas percurso longo, no final de um dia que você acordou muito cedo, não se alimentou bem e já tinha corrido 13,5km, uma hora a conta chega e ele quebrou. Quebrou, não conseguia reencaixar o ritmo, começou a ver o pace desabar, atletas ultrapassando ele e foi ai que ele percebeu que na corrida, às vezes, o incentivo pode vir de outro competidor. Quando uma atleta passou, ele pediu: “quando você chegar na transição, procura uma atleta com a camisa da minha equipe e. por favor, avisa que eu quebrei e não vou chegar a tempo”. Ai ela falou: “quebrou não. Vem comigo que você vai chegar a tempo” e vieram conversando com um pace mais confortável.
Como o tempo dele estava se esgotando, tivemos a certeza de que algo tinha dado errado. Para chegar nesse último posto de troca, os atletas atravessavam uma passarela de um lado para o outro da Avenida Beira Mar e, com isso, conseguíamos visualizar sua chegada. Cada camisa vermelha que aparecia, acreditávamos que era ele e nada. Quando faltavam 2 minutos para fechar a transição, ele apontou na topo da passarela, engatou uma 5ª marcha e começou a descer desabalado. Foi uma correria dos integrantes da nossa equipe gritando o tempo que faltava e ele veio que nem um louco, entregando a pulseira a 1 minuto do fechamento.
Foi sensacional!!! Teste para qualquer coração. Comemoramos como se fossemos campeões. Agora era só entrar na van e partir para a chegada, esperar a Lu e cruzar com ela a linha de chegada.
Muito obrigado equipe ML Mix Run 159, vocês foram sensacionais!
Equipe da ML Mix Run 159 com as medalhas do Revezamento Volta à Ilha
No avião na volta para o Rio, cercado por outros apaixonados pela corrida, eu pensava: “Não importa o motivo. Uns correm para ganhar, outros para se testar, alguns por diversão e outros tantos para aliviar o estresse e suas ansiedades, mas o que importa é que nessa prova todos tem espaço”.
Ano que vem tem mais!”
Paulinho
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. “Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer.”