Sempre que estou numa linha de largada, me sinto diante de uma grande tela de cinema e, naquele momento que soa o sino, é como se eu mergulhasse em outro mundo, em outra dimensão. Se me proponho a tal é porque procuro viver intensamente aquele momento único, correndo, subindo e descendo as montanhas. Lá as minhas fraquezas se convertem em fortalezas.
Na minha segunda participação do Endurance Challenge Chile, tudo estava indo como planejado. No dia anterior preparei todo o meu equipamento para prova: mochila de hidratação, short de lycra, camiseta e, também, os equipamentos obrigatórios: celular, reservatório com capacidade mínima de 1,5 litros, reserva alimentar e apito. Afixei o numeral na minha camiseta, separei o meu tênis Salomon S-Lab 5, e também decidi utilizar umas super polainas da Raidlight, que havia finalmente encontrado para comprar e fui dormir, após cumprir todo o ritual, mesmo com um pouco de ansiedade e querer despertar logo para me aprontar para a prova no dia seguinte.
Dormi e acordei bem disposto. Logo me preparei e peguei uma condução, 15 minutos depois ou até menos já me encontrava no local de largada da prova. Fiquei por lá num longo bate papo com o Cesar Picinin e o Guilherme Sakai, trocando experiências, mas a cabeça estava na largada e na prova, que iria enfrentar minutos depois. Estava ansioso, nervoso e pensativo, e, por outro lado, feliz com a oportunidade de ter o primeiro contato pessoal com esses dois irmãos, já que a nossa realidade de vida virtual tanto nos aproxima como também nos afasta. Finalmente fomos fazer um breve aquecimento, já que iríamos enfrentar o mesmo circuito de 50k.
Aquecimento concluído e a chamada para a largada, tudo começou a acelerar até que segundos antes da largada, o tempo parou por centésimos de segundo e, enquanto colocava as mãos no meu peito para agradecer, observei que tinha perdido parte da minha suplementação. Imediatamente largamos e minha mente estava em ritmo alucinante, buscando uma nova estratégia e pensando no que viria a ser o significado da palavra autossuficiência. Pensava em tudo ao mesmo tempo. Uma verdadeira batalha da mente estava sendo travada.
Naquele momento, não era mais um telespectador da grande tela de cinema. Eu estava lá dentro, participando, dando vida aos meus sonhos. Enquanto isso, todos os corredores, num só sentido, buscavam o melhor local para correr na escuridão. As luzes das nossas lanternas rasgavam a escuridão até chegar ao alto da primeira montanha, de onde podíamos observar o amanhecer em toda capital Santiago do Chile. A cidade toda iluminada como se fosse um mar de luzes.
Com a respiração ofegante e a cabeça quente de tanto pensar no que fazer diante da mudança de estratégia, já que não teria a energia instantânea com a qual o meu corpo está adaptado no meu dia a dia, nos treinamentos. Procurei buscar forças e prosseguir rumo às trilhas que cruzavam as montanhas de um lado para o outro até chegar ao ponto mais alto de todo o circuito da prova.
Éramos três brasileiros disputando as posições da frente. Fiquei próximo do Picinin, um mineiro de voz mansa, durante grande parte do percurso. Sempre alternávamos de posição, ora ele puxava o ritmo na subida e, logo na sequência, eu descia velozmente. O terceiro era o Nelson da Costa, com quem tivemos um breve contato.
Eu me concentrava na prova, e apenas com frases curtas um procurava motivar o outro. Meu desejo, neste instante, era aproveitar cada quilometro que tinha pela frente naquele lugar que, às vezes é bem árido, com espinhos por todas as partes e, em outros momentos, pode-se contemplar as montanhas que constituem as pré-cordilheiras e que ficam logo abaixo da Cordilheira dos Andes, a cordilheira mãe, com suas altas montanhas, que chegam quase até o céu. Mas o nosso instinto procurava o caminho correto a seguir, como se fôssemos nascidos naquela região. Através do balizamento feito pelos organizadores da prova, percorria caminhos familiares aos meus olhos – no ano anterior havia me sagrado campeão exatamente no 50K.
Me planejei, durante meses, para estar ali naquele acontecimento, vivendo tudo aquilo. Eu tinha o desejo de ser o vencedor novamente. Os meus pensamentos eram frustrados pelo raciocínio lógico de que tinha poucas chances e que não poderia desperdiçar nenhuma oportunidade. Meu corpo estava fraco e me encontrava cansado e, neste momento crucial, tive que tomar uma decisão muito importante. Parar para me alimentar e prosseguir vivo na prova com chances de ocupar o pódio ou prosseguir lutando contra o meu próprio corpo nos 20km que teríamos pela frente e ter que, possivelmente, abandonar a prova.
Neste momento, estava próximo de mais quatro atletas, dentre eles o Picinin.
Parei no PC e um senhor me ofereceu uma pizza brotinho, que parecia ser a coisa mais deliciosa do mundo. Logo em seguida ele me informou que teria que aquecê-la. Fiquei aguardando por alguns minutos a pizza. Peguei alguns pedaços de chocolate e fatias de laranja para comer durante o caminho. Depois, peguei a pizza, fui trotando e saboreando-a e, quando olho para trás, na distância que me encontrava, vejo um atleta se aproximando e apressadamente acabo de comer a pizza. Prossigo correndo até tentar me aproximar do atleta que me ultrapassou, enquanto eu comia a pizza. Logo passo por ele e lhe desejo sorte e força para prosseguir. Na corrida de montanha, sempre procuramos ajudar uns aos outros.
Prossegui correndo e sentindo que a corrida estava ficando mais confortável novamente e que podia completar a prova e que todos os medos seriam vencidos. Encontrei-me, naquele momento, renovado e forte para prosseguir até a linha de chegada. Algumas horas depois estava me aproximando dos quilômetros finais, ouvindo o som da festa de chegada dos atletas que cruzavam a linha. No meu peito, o coração desejava cruzá-la com toda a minha força e nada podia me fazer parar de correr. Cheguei na 5ª posição geral e fiquei sabendo que o Picinin tinha ficado em terceiro. Fiquei feliz por ser um compatriota que estaria no pódio juntamente comigo.
O resultado final nem sempre é o maior aprendizado em uma prova de montanha, e o sentimento de não ter sido bicampeão não significava uma derrota para mim. Não era o meu dia! Todavia, fiquei feliz com as lições que venho adquirindo com as corridas de longa distância em montanhas, as famosas Ultra Trails. Realmente tem se tornado uma filosofia para mim. É como se fosse um retorno às minhas origens. Ainda me sinto aquela criança de 6 anos de idade que corria rumo à montanha que ficava atrás da sua casa e lá sempre encontrava algo além das intermináveis subidas. No Endurance Challenge Chile 50k, deste ano, revivi experiências fantásticas e aprendi a lidar com todas as minhas fraquezas. Sofri pressão por todos os lados. Corri por muitos quilômetros, carregando pedras que representavam as dificuldades a serem transpostas e consegui superar cada uma. Desse modo, ao cruzar a linha de chegada, me senti forte e capacitado para os próximos desafios.”
Weliton Carius
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. “Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer.”