A “Revista O Globo”, do último dia 21 de fevereiro, trouxe, na coluna de Mauro Ventura, “Dois e a conta”, uma entrevista com Neide Santos, criadora do projeto Vida Corrida. Vale muito a leitura…
Neide Santos com jovens de seu projeto Vida Corrida. Arquivo pessoal
REVISTA O GLOBO: Quando você começou a correr?
NEIDE SANTOS: Na escola, aos 14 anos. Eu jogava handebol, faltou uma menina no revezamento 4×100, o professor apontou para mim e disse: “Aquela ali é a mais magrinha, qualquer coisa o vento leva.” Eu nunca tinha corrido, mas fiz a melhor marca e me apaixonei. Recebi convite para treinar em centro de alto rendimento, mas voltei a morar com minha mãe biológica e tive que cuidar de seis irmãos mais novos e trabalhar como costureira. O sonho olímpico foi embora, mas não parei de treinar. Eu era a única mulher que corria no Capão Redondo. E a única que praticava esportes. Os homens podiam jogar futebol, mas elas tinham que cuidar dos afazeres domésticos. Mulher de comunidade é para lavar, passar, cozinhar, cuidar da casa e dos filhos…
E como surgiu o Vida Corrida?
Foi graças a Maria Gonçalves, que morava na comunidade. Ela nasceu no Nordeste, e andava seis quilômetros para ir trabalhar na lavoura e mais seis para voltar. Era atleta e não sabia. Veio para São Paulo, virou costureira, falou que o corpo estava todo errado e quis correr comigo, em 1998, aos 60 anos. As demais pensaram: “Se essa velhinha pode, eu também posso.” Pouco a pouco as outras vieram. De lá para cá, já passaram mais de 1.500 mulheres pelo projeto. Gente como Maria do Livramento, de 62 anos. Ela nasceu em Minas, não conheceu os pais, veio para SP aos 16 anos trabalhar como empregada doméstica e só se alfabetizou aos 17. Casou com um marido opressor que a espancou por muitos anos, mesmo grávida. Diz que encontrou a razão de viver com o Vida Corrida. Formou-se em Pedagogia e fez pós em História. Além de melhor qualidade de vida, os participantes do projeto socializam, voltam a estudar, melhoram a autoestima, têm aulas de ioga e inglês, e palestras com nutricionistas, fisioterapeutas, atletas. Fizemos parceria com a promotoria pública e elas têm orientação para denunciar violência doméstica. Elas se sentem acolhidas aqui.
Quando as crianças começaram a fazer parte do projeto?
Casei aos 18 anos e aos 20 perdi meu marido. Era negro, voltava do trabalho tarde da noite, morava aqui na comunidade tida como a mais violenta de SP e foi assassinado por um PM. Anos depois, meu filho, Marcos, que via o trabalho com as mulheres na ONG, sugeriu que eu atendesse também crianças. Mas não tinha estrutura. Em 2000, aos 20 anos, ele foi morto num assalto perto de casa por um menor de 14 anos. Meu mundo desabou. Desejava morrer. Parei o projeto, mas todo dia mulheres da comunidade batiam à porta pedindo que voltasse e realizasse o sonho de Marcos. Após dois meses, voltei.
Como conseguiu superar tantas adversidades?
Eu tenho uma eterna busca de ser feliz. Casei de novo, tive mais dois filhos biológicos e virei mãe das centenas de filhos de coração que a comunidade me deu. Uma vez prometi que nunca mais veria minha família estampada nas páginas policiais e que iria escrever uma história linda. Consegui. Só falta conduzir a tocha olímpica no Capão Redondo, com as crianças atrás, para deixar um legado: “Quando se perde alguém, não importa quem puxou o gatilho, retribua com o bem.”
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. “Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer.”