Fiquei com vontade de escrever depois que alguns amigos corredores me disseram “tá fazendo corridinha de mulherzinha agora?” Quis responder assim:
Eu não via com bons olhos uma corrida só para mulheres, tinha a impressão de um certo sexismo, algo do tipo “elas correm menos e mais devagar, são frágeis e fraquinhas, vamos colocá-las no seu lugar”. Corro há 15 anos, já fiz várias meias maratonas, não preciso mais estar inscrita numa corrida para me manter treinando. Arrogantemente pensava que era uma bobagem uma corrida só para mulheres.
Foi um filme que me deu vontade de estar neste exército de corredoras. Quando assisti “As sufragistas”, que fala sobre a luta das inglesas pelo direito de votar, relacionei um exército de mulheres reivindicando o direito ao voto a um exército de mulheres corredoras, em busca de uma vida diferente, com mais igualdade e respeito, e mais feliz. E o que vi estava bem perto disto. Me diverti, refleti e me emocionei.
Depois de muitos anos correndo, muitas distâncias percorridas, é inevitável o desejo-compromisso de “fazer tempo”, o que acaba eliminando boa parte do prazer que está por trás da liberdade de simplesmente correr. Algo como “brincar com os amigos”, sem pressa de chegar, sem tempo para marcar… Só brincar de correr, podendo se libertar de mais uma obrigação que a vida , e a opinião externa, nos impõe. Não faço mais a pergunta: Correu? Fez em quanto?”. Mas sempre que reencontro algum amigo corredor que não vejo há muito tempo, não resisto: “continua correndo? Não pare!”, digo, acreditando que posso convencer.
No dia da Vênus RJ (9/10), o único compromisso que me coloquei foi fazer 15km. Ao longo da prova, uma querida amiga ultramaratonista, cujos 15km para ela eram fichinha, ia e voltava ao longo do percurso estimulando a mulherada, como quem tocava uma boiada cansada e desidratada pelo sol quente. Lindo de ver a energia daquela pequena mulher motivando suas “companheiras de luta”.
Vi na Vênus carioca milhares de mulheres felizes por ter um dia só delas. As mulheres ainda se sobrecarregam com as tarefas domésticas, sentem-se obrigadas a dar conta de casa, trabalho, marido, filhos… Para muitas era a estreia nas competições, o que deixava o clima ainda mais excitante, marcado por ansiedade e muita vibração. Vi alguns casais de mulheres, muitos casais héteros, muitas mulheres solteiras que não estavam reclamando que estão sem um homem… vi mãe e filha correndo juntas, irmãs gêmeas. Vi mulheres em busca de um domingo feliz, fazendo algo nada ordinário para elas.
Mas uma coisa chamou especialmente minha atenção. Os homens com bolsas femininas a tiracolo aguardando por suas atletas, homens como staff, ansiosos por registrar tudo, vários com câmera na mão e uma criança na outra. Havia também aqueles que corriam junto, lado a lado, como pacer de sua amada, incentivando, dando dicas de como correr. Eu colava atrás deles e ficava observando. Colei também com uma senhora de 76 anos, Neusa, que corre há mais 30 anos. Recuperei um pouco enquanto conversava com ela, depois parti para tentar acompanhar a Cris, minha amiga ultramaratonista cheia de energia. Para não quebrar, colei atrás de outro casal para observar o que rolava naquele pace perfeito.
Enquanto corria lembrei do livro da Virginia Woolf, “Um teto todo seu”. A participação das mulheres nas corridas de longa distancia vêm aumentando, mas os homens predominam na maioria delas. Para treinar para corridas longas não basta vontade, é preciso tempo, e dinheiro. Aproveitar o dia de uma corrida toda sua pode deflagrar uma série de questões cotidianas das quais nós mulheres não nos damos conta. Algumas corredoras deixam de correr porque o parceiro implica com o fato de “ficar saindo para correr”, e muitas vão esquecendo de si mesmas. Sim, o mesmo acontece com os homens.
Mas, felizmente, homem não é tudo igual. Muitos são grandes parceiros, e, por mais que nós mulheres sejamos independentes, corajosas e rápidas, um grande parceiro – ou parceira, claro – faz toda diferença na nossa vida. Eu era uma dessas felizardas, enquanto corria, meu grande parceiro, meu amor ciclista, meu pace perfeito, cuidava para mim de um projeto super importante na minha ausência, para eu poder estar ali correndo. E enquanto corria, pensava em tudo isto. A semana tinha sido muito cansativa, correr entre aquelas mulheres naquele dia tinha um valor simbólico muito forte. Equacionar casa, filho, trabalho, o desejo de ingressar no doutorado, vida pessoal e treinos… É um desafio e tanto. Há um ditado que gosto muito: “quer ir mais rápido, vá sozinho. Quer ir mais longe, vá acompanhado.” Par perfeito não existe, e pace perfeito é aquele que apóia nossas escolhas, e está presente em momentos importantes da nossa vida, nas estreias que podem mudar nosso futuro.
Ouço com muita atenção a forma como as pessoas mudam de vida por causa da corrida. Há os que se separam – porque descobriram que o pace da vida a dois azedou de vez. E há aqueles que se encontram e reencontram treinando, numa tentativa de construir novos laços afetivos e de cumplicidade. Mas naquela corrida havia também aquela que queria mesmo é ficar sozinha, para ter um dia só seu, cansada de viver cuidando de alguém.
Homens e mulheres são diferentes, um ajuda o outro com suas sutilezas e subjetividades. Um busca o vácuo do outro quando estiver cansado. O esporte une parceiros amorosos, pais e filhos… é preciso apostar mais nesta possibilidade. Se seu parceiro/parceira não corre, incentive-o, negocie sua distância e seu ritmo para desfrutar de momentos de cumplicidade com quem ama. Arrisque ter um dia diferente em família.
É maravilhoso diminuir o tempo na corrida, saber que posso fazer distâncias mais longas, mas está claro para mim que não posso perder o prazer de brincar de correr, e, principalmente, não posso parar de correr. Torço para que todas aquelas mulheres não parem nunca de correr e que aqueles casais e os pais com seus filhos preservem a cumplicidade que vi.
Correr ou caminhar junto também deve ser um desafio que devemos nos colocar cotidianamente. E este desafio talvez seja maior do que completar uma ultramaratona. Os principais efeitos do esporte para nós, atletas amadores, está no processo. Quando cruzamos a linha de chegada tudo o que vivemos de ruim antes fica pelo asfalto, e as coisas boas ficarão no nosso corpo e no nosso coração.”
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p dir=”ltr”>Cissa Gomes, 49 anos.
Corre há 15 anos, fez cinco meias maratonas e é mãe do Pedro, 9 anos. Consegue treinar de 3 a 4 vezes por semana, estudar, levar e pegar o botafoguense na escola, namorar o marido e cuidar da casa. Projeto esportivo: fazer a Meia de NY. Projeto de vida: um filho de cuca legal.
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. “Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer.”