Sim, sou ultramaratonista! E não é fácil, meu amigo(a). Por Marcelo Telles Ribeiro

Marcelo Telles Ribeiro em uma das subidas da De Elite Trail Festival, em Rio Claro, no Rio de Janeiro
Marcelo Telles Ribeiro em uma das subidas da De Elite Trail Festival, em Rio Claro, no Rio de Janeiro
No último dia 4 de Agosto, em Rio Bonito, no Green Valley, no Rio de Janeiro, aconteceu a De Elite Trail Festival , organizada pela De Elite, com diversas distâncias (7km, 15km, 30km e 54km). Devido as condições climáticas que antecederam o evento, tivemos chuvas nos últimos dias e o piso virou uma verdadeira pista escorregadia, com aquela lama do tipo argila, que agarra no tênis e tira o efeito de tracionar na subida e travar nas descidas….. mas vou contar por partes a minha grande aventura de transformação para ultra.
Coloquei o despertador para as 3h11m e às 4h já estávamos dentro do carro, pois o Rio Bonito fica a aproximadamente 1 hora,  sem trânsito. No carro, eu era o “café com leite”. O casal que dividia o banco de trás já tinha participado de ultra maratonas, com distâncias de 70km e o motorista tinha concluído recentemente os 235Km da Ultra Maratona do Anjos – UAI.
Só de estar ali e ouvir as historias e os exemplos foi deixando a minha mente mais forte. A adrenalina correndo nas veias e aquele friozinho no estômago, que sempre nos acompanham. Chegando em Rio Bonito, às 5h15m, ainda escuro, a louca tribo dos corredores já estava se amontoando. Sim, somos LOUCOS…e FELIZES !
Marcelo Telles Ribeiro em um dos trechos da De Elite Trail Festival, em Rio Claro, Rio de Janeiro
Uma enorme confraternização antes da largada para vencer 54km com um desnível positivo acumulado de mais de 2.400 metros, divididos em seis subidas. Pude acompanhar o Congresso Técnico ocorrido na noite anterior pelo Instagram e ver as dicas e orientações da prova pelo diretor técnico Manuel Lago e pelo organizador Rafael Sodré – integrante do Batalhão de Operações Especiais (BOPE).
Para cada percurso, uma fita de cor diferente e, preferencialmente, elas estariam do nosso lado direito. No caso dos 54km, a fita seria laranja. E pra quem sabe da minha história, vai remeter a Runners Club, de cor laranja, cujo o lema é “faca na laranja”, e onde comecei a correr na montanha, sendo o campeão do Circuito de Corridas de Montanha na faixa etária em 2014 e 2015. Comento isso para vocês verem que existe uma longa preparação para poder ficar correndo por quase 9 horas e não praticar nenhum ato de loucura ou heroísmo…mas voltemos a prova.
Dada a largada, na Praça Central do Green Valley, 2km de asfalto. Minha estratégia sempre foi de completar o percurso e iria com o colega de corrida Tiago Soeiro, que estava no carro, devagar e sempre, e de olho nos pontos de corte. Ao sairmos do asfalto, o Tiago comentou pra eu ir embora que ele iria em outro ritmo… Começamos a correr e a subir pela estrada de paralelepípedo e, depois, terra até a primeira bifurcação à esquerda – início do single track… Aí é que a prova mostrou o quanto difícil seria.
A tal da argila fina impedia a progressão e tínhamos que buscar a vegetação ao lado da trilha para conseguirmos caminhar. E tombos, sim muitos tombos. Parecia um interminável exercício de equilíbrio ou propriocepção. Ao final da primeira subida, encontrei meu amigo e ultramaratonista Lelo Almeida. Estávamos no grupo do terço final dos corredores e iniciamos a primeira descida por uma estrada em que o barro começou a agarrar no tênis – deixando ele muito pesado. Era uma a sensação de pata de elefante. Não adiantava parar para tirar, pois em poucos passos, tinha mais barro agarrado nos tênis.
Nesse momento, Lelo ficou um pouco atrás e comecei a segunda subida, em estrada larga e também escorregadia, praticamente 80% do circuito estavam nessa condição, só que com um bastão natural que encontrei da Mata Atlântica, com suas árvores e diversos tons de verde, nos abraçando e convidando para dividir esses momentos magníficos. Passamos pelas área das bananeiras, em um zigue-zague, que precisava ter atenção, e fomos para o segundo single track no km 15.
Nesse momento encontrei alguns corredores e, em especial, Patrick Vigio, que em condições normais é muito mais rápido do que eu. A prova confirmava sua dificuldade. Nossa amiga e nutricionista Juliana Soeira, mulher do Tiago, tinha a estratégia de acompanhá-lo. Eu pedi passagem e fui embora… Estava muito bem condicionado mentalmente a fazer 20 + 20Km em menos de 12 horas, que foi a estratégia de treinos utilizada pelo meu treinador Paulo Henrique de Carvalho Santos, o Paulinho. Ou seja: para uma ultramaratona, não treinei nem um dia acima de 22km… Estranho, não?
Partimos para a terceira subida onde todos estávamos caminhado e, nesse momento, encontrei André Fróis, colega de assessoria, que estava como staff. Ele é um outro monstro das corridas… Ele correu os 135km da UAI em 17 horas para ser o campeão. Com aquela imagem e com o sorriso, comentei que estava com ele na mente para seguir em frente. E tome subida e mais subida em estrada de terra. Estava tão alto que as nuvens ficaram embaixo de nós. A prova pareceria uma skyrunning.
Os corredores de 30km já se misturavam conosco dos 54km e os mais rápidos, ainda com muito gás, conseguiam manter um trote ascendente. Nova bifurcação e novo staff. Agora Carla Gomes, ultramaratonista e fisioterapeuta, estava lá. Treinamos juntos, temos o mesmo pace. Ela, que vinha dos 65km da UAI, informava que havia um pequeno desvio à esquerda para subir e pegar uma pulseira. E lá fomos nós…
Mais alguns quilômetros morro acima. Chegando ao platô, que era um check point, tinha mais uma staff que também é corredora, insana, a ultramaratonista Silvia Carvalho, que correu em Visconde de Mauá. Sua função era confirmar as colocações e colocar uma pulseira preta no pulso para confirmar o trajeto.
Admirando a paisagem com as nuvens abaixo, fui em busca da casa amarela onde tinha um posto de hidratação de água nascente e pura. Era o ponto mais alto da prova, com 806m. Com o plano nutricional traçado, variava entre a reposição de doces (gel carboidrato, bananada e paçoca) e  salgados (pão com azeite e queijo e batata chips). Que água gostosa. Meia maratona já concluída.
Mais uma subida insana de single track e escorregões. Uma outra amiga minha deu uma força: VAI REI! Em homenagem ao meu apelido de Leão da Montanha. Sebo nas canelas morro acima. Senti frio. A umidade que tomava nosso corpo, com a presença de um vento, foi um momento de desconforto, que fiquei na dúvida se colocava o colete. Mas quando chegamos ao topo, foi um downhill fechado na floresta. Estava tão escorregadio que um corredor atrás de mim saiu repentinamente da trilha e literalmente se estabacou morro abaixo. Nos corredores de montanha temos o espirito de cooperativismo e parei para socorrê-lo. Foi só um susto e continuamos a descer. Dessa vez deixei ele ir na frente.
Atrás de mim outra corredora, Marjorye Brandão, nos 30 km e feliz da vida pela técnica do skibunda morro abaixo. Fomos ate a nova bifurcação dos 30km à direita e 54km à esquerda. Totalmente sozinho, solitário, mas com a vontade e constância, segui em frente pelas lindas paisagens, rios e riachos, até começar as descidas em estradão de terra. Consegui encaixar um bom ritmo (5m10s por km) e quase levei três tombos. Pelo giro da perna e escorregões, a própria perna batia na outra…ou seja: uma self-vaca!
Aproximando do Km 30, com hidratação e sólidos (fruta, pão, amendoim, doce de leite e outros) passei rápido e comi apenas um pão e me reabasteci. Foi um erro. Pois os próximos km eram planos e senti fome. O abraço do urso se fez presente e as pernas já não corresponderiam a vontade da cabeça. O ritmo caiu para 6m/km. Quando cheguei ao PC 39 tinha fome e sabia que precisava comer, mas estava enjoado e cansado. Fazendo as contas, teria mais 15 km pela frente.
Marcelo Telles Ribeiro e Fátima Pessoa durante De Elite Trail Festival, em Rio Claro, Rio de Janeiro
Bebi coca, comi o amendoim e peguei uma banana. Encontrei mais uma amiga e corredora fera – Fatinha Pessoa – que com seus mais de 60 anos deixa muita gente comendo poeira. Fomos em frente. Os três quilômetro seguintes foram ruins, pois pegavam uma parte da cidade e estrada com o trânsito aberto até o inicio da quinta subida… a que seria a pior!
Como não conhecia o trajeto, achava que a pedreira já tinha passado. Mas começamos a subir por uma estada atá a praça e dai pra frente voltamos ao single track. Era tanta subida que o corpo não pensava mais. Com a Fatinha logo atrás, peguei mais um graveto e fiz o apoio com duas bases. Saímos da subida da floresta para o descampado, em mato, com a Bandeira no topo.
A visão engana, e muito. A pequena distância visual de 300 ou 400 metros levou uma eternidade. Nesse quilômetros fiz o pace de 30 minutos. É isso mesmo!!! 30 minutos para vencer apenas 1km. E apareceu a Juliana Soeira – uma cabrita. Morro acima ninguém segura. E lá fomos nos três, rumo ao PC no Km 45.
Na descida, eu soltava o ritmo e mesmo quando tivemos um escorrega, eu fui embora…. Entramos em outro zig zag em descida, onde eu rompi os 43km e a felicidade de tornar um ultramaratonista encheu meus olhos de emoção. Estava conquistado. Haviam “apenas” mais 11km pela frente. Chegamos ao PC 45 e, para a minha surpresa, mais um colega e ultramaratonista estava lá. Rafael 235. Fera, muito fera. Tive o prazer de treinar com ele antes de ele encarar a UAI Survivor. E tudo isso vem na mente. Um abraço, um incentivo, uma força. E mais uma reposição completa. Juliana já na subida e eu atrás.
Chegamos aonde o diretor técnico Manuel Lago estava para dar as orientações finais. E o André Fróes estava lá. Com um simples gesto de bater palmas estava nos reverenciando! Dando parabéns. Algumas horas antes éramos duvidas, agora a menos de 10km do sonho. O sol saiu. E pegamos um trecho inverso do percurso de 15km que eu já conhecia de um treino técnico de reconhecimento que havia realizado.
Marcelo Telles Ribeiro cruza a linha de chegada dos 50km da De Elite Trail Festival, em Rio Claro, Rio de Janeiro
Vencemos a sexta e última subida. Era só descida e uma frase da Fórmula 1 vinha na minha cabeça: levar as crianças pro box. O que tinha que ser feito, fora feito. Quando saímos da trilha e começamos a descer fui ultrapassado por Rodnei Souza, que me puxou de um caminho errado. Eu sabia que perderia uma posição e talvez até o pódio da categoria, mas o espirito de preservação e objetivo de CRUZAR a linha de chegada era o foco, a cereja do bolo. A dois quilômetros da chegada, mais uma surpresa. Dois amigos ultramaratonistas – Breno Braga e Frederico Rubinato – estavam lá para nos conduzir ao momento de glória e êxtase total. E assim foi. Após 8h54m50s cruzei a linha de chegada e na incrível posição de 11º geral e quarto na categoria! FELIZ Dia dos PAIS!
Marcelo Telles Ribeiro e uma amiga com a medalha dos 50km da De Elite Trail Festival, em Rio Claro, Rio de Janeiro
Marcelo Telles Ribeiro

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Sobre Iúri Totti 1379 Artigos
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. "Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer."

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