Como os ultramaratonistas aguentam tanto exercício?

Ultramaratonista passa diante de uma antiga construção grega durante a Spartathlon
Ultramaratonista passa diante de uma antiga construção grega durante a Spartathlon

Por Sarah Keating/BBC Future.

Nas primeiras horas de uma noite do final de setembro, em algum lugar entre Atenas e Esparta, na Grécia, um grupo de corredores se arrastava de cansaço. Estava escuro e chovendo muito, e os atletas chegavam ao meio de uma impressionante corrida de 246 quilômetros. Os corredores se aventuravam na Spartathlon. Começando ao amanhecer na sombra da Acrópole, em Atenas, e terminando em Esparta, o evento anual recria a jornada do mensageiro grego Pheidippides, que fez a percurso em um dia e meio para convocar as tropas espartanas.

Esse antigo ultramaratonista é, aliás, mais conhecido por sua lendária corrida de 42 quilômetros da Baía da Maratona a Atenas – de onde surge o termo “maratona”.

A corrida anual foi realizada pela primeira vez em 1983, e o recorde de 20 horas e 25 minutos foi alcançado um ano depois. Nenhum corredor conseguiu bater a marca desde então. Mas não é por falta de tentativas.

A popularidade das ultramaratonas disparou nos últimos anos – assim como o interesse na ciência e na mecânica da forma como o corpo funciona em situações extremas.

Qualquer um que participe de uma competição como essa irá correr por um longo período. O que é necessário para ter tamanha resistência – tanto física quanto mental? E que estratégias esses atletas usam para se manterem motivados e de pé durante a corrida?

Dean Karnazes é um desses corredores que ultrapassam seus limites. Essa é sua segunda Spartathlon, mas, desta vez, além de a corrida ter sido atrapalhada por uma tempestade que tornou a meta ainda mais difícil de atingir, ele corre com o quadril machucado – resultado de um acidente de carro.

Por conta disso, Karnazes seguia lentamente pela metade da corrida, quando, diz ele, “todo seu corpo começou a doer”. Nesse ponto, completa, “é realmente desmoralizante ir tão devagar”, mas ele seguia em frente. “Não é bonito, não é rápido, mas é um movimento.”

Limite de velocidade

Mark Burnley, fisiologista de resistência na Universidade de Kent, investiga a biologia por trás da rapidez com que alguém pode correr uma variedade de distâncias, de corridas de velocidade a ultramaratonas.

Na corrida de longa distância, três parâmetros determinam o desempenho do atleta, afirmou o pesquisador à CrowdScience. Primeiro, você precisa de um alto VO2 máximo – a quantidade máxima de oxigênio que seu corpo consegue usar durante um exercício intenso.

O segundo fator é um alto limiar de lactato, que é o ritmo máximo em que você consegue correr sem produzir mais lactato (derivado do ácido lático) do que seu corpo consegue expelir. Terceiro, você precisa de uma excelente “economia de corrida” – o equivalente para os humanos da economia de combustível do seu carro, ou seja, a eficiência de uso de recursos para cobrir a distância.

“Juntando esses três fatores, você vai correr uma maratona com rapidez”, diz Burnley.

O recorde mundial de maratona é atualmente de pouco mais de duas horas. Seria possível que fosse ainda mais rápido? Embora a quebra do recorde pareça ser apenas uma questão de tempo, Burnley diz que o corpo tem alguns fatores limitantes.

“O corpo tem essencialmente dois sistemas de fornecimento de energia. Temos um metabolismo aeróbico, que usa o oxigênio da atmosfera”, explica Burnley. “E temos o metabolismo anaeróbico, que são processos de transferência de energia que não envolvem oxigênio”.

Uma dificuldade ao correr uma maratona, continua ele, é quando o corpo não transforma a energia rapidamente usando o sistema aeróbico.

Corredores de ultramaratona, enquanto isso, correm bem mais devagar que os de maratona mais rápidas. As pessoas tendem a completar os primeiros 42 quilômetros da corrida em tempos próximos a três ou quatro horas. Mas uma vez completos os primeiros 42 quilômetros, os ultramaratonistas têm quase cinco maratonas a mais.

“A ultra-resistência é mais um processo de tentar limitar os danos que você faz ao seu corpo naquele evento específico”, afirma Burnley. “Em relação a cinco e dez quilômetros de corrida, geralmente fala-se como chegar a um certo ritmo e, então, ser capaz de mantê-lo. Em uma corrida de ultra-resistência, você está tentando apenas completar a tarefa.”

O que isso significa em termos práticos é um ritmo arrastado. O objetivo do corredor de ultradistância “é tentar correr com o mínimo de sustentação nas pernas, essencialmente tentando minimizar o custo de energia de sua corrida”, diz Burnley.

Força mental

Para muitos atletas, porém, um dos fatores potencialmente mais limitantes é a mente.

Ainda na Grécia, Karnazes foi visto pela última vez se arrastando por uma montanha na escuridão enquanto era castigado pela chuva. Como um corredor experiente de ultradistância, ele conhece a extraordinária força psicológica necessária para continuar colocando um pé na frente do outro.

“Há momentos em que você se sente muito forte, como se pudesse continuar correndo para sempre”, diz ele. “Logo depois, você sente como se tivesse de parar de qualquer maneira, sente que dói tanto que você não pode chegar nem na esquina da rua. E então você ultrapassa esse obstáculo e se sente forte novamente.”

Não há dúvida de que a corrida de longa distância ande de mãos dadas com a força mental.

“Evidências indicam que aqueles que competem em eventos de resistência têm maior tolerância à dor”, diz Carla Meijen, psicóloga esportiva especializada em resistência física pela Universidade de St Mary, em Londres. “Não sabemos se essa tolerância à dor é resultado da sua pressão interna para passar por todos esses eventos ou se é algo inerente.”

Pesquisas sugerem que cerca de metade dos competidores de ultramaratona experimenta mudanças significativas em seu estado mental. “Você pode se sentir um pouco desorientado, um pouco confuso”, diz Meijen. “Acho que o principal é a autorregulação, ou seja, como você é capaz de lidar com isso.”

É algo de que Karnazes entende. “Acho que a primeira metade você corre com as pernas e a segunda metade, com a mente”, afirma ele sobre a Spartathlon. “Chega a um ponto na corrida em que a dor te consome, aí você tem de lidar com o fato de que há muita dor – e ela não vai desaparecer.”

Nos momentos de uma corrida em que o corpo está exausto, quais são as técnicas psicológicas que você pode usar para superar seus limites?

De acordo com Meijen, é preciso estar pronto para esses momentos. Antes da corrida, ela explica, deve-se refletir sobre experiências anteriores, aprender com elas, para se antecipar a como responder à situação antes de vivenciá-la.

Já na corrida, quando seu cérebro quer que você pare porque está com dor, distraia-se, diz ela. “Pode ser que você precise se alimentar mais”, diz ela, ou “pensar como vai se recompensar ao final do evento”.

Ela também sugere o uso de estratégias de regulação ativa durante uma corrida, como técnicas de motivação pessoal ou mesmo de relaxamento.

Seja lá o que funcionar melhor para você, afirma Meijen, é preciso praticar com antecedência. Dessa forma, quando você começa a sentir a exaustão, é possível se recompor.

Estoque de sono

Cansaço e privação de sono são, é claro, um grande fator para aqueles que competem em uma corrida que segue pela noite – ou até várias noites. Um estudo recente descobriu que a maioria dos corredores tenta “estocar” o sono antes de uma longa corrida dormindo por mais horas à noite ou cochilando durante o dia.

O fato de esses atletas de elite dormirem ou não durante uma corrida depende da duração da prova. Para corridas com menos de 36 horas, como a Spartathlon, a maioria dos corredores tende a não dormir durante todo o percurso.

Para corridas que se estendem por mais de uma noite, os corredores tiram uma ou mais sonecas com duração entre 10 e 30 minutos. A maioria prefere dormir à noite nos postos de atendimento, onde os participantes também recebem comida e água.

E esses cochilos estratégicos têm um resultado interessante. Um estudo científico de ultracorredores participando da Tor des Géants, uma corrida de 330 quilômetros nas montanhas da Itália, mostrou que o cansaço e as lesões musculares foram menos intensos do que para pessoas que correram apenas metade dessa distância. Pesquisadores descobriram que nas corridas mais longas, um ritmo mais lento e sestas rápidas tinham um efeito protetor significativo sobre os músculos.

Para os 239 dos 381 corredores que se aproximam de Esparta, a linha de chegada está à vista. Mas não há sinal de Karnazes. Em um telefonema rápido depois da competição, ele conta que não conseguiu terminá-la.

“Ela me pegou, foram 24 horas de chuva”, diz ele. “Para ser honesto, estou aliviado. Nunca há qualquer garantia de que você vai terminar. Eu tenho grande respeito por todos que participaram da corrida.”

Na linha de chegada, fica claro que, embora haja uma emoção indescritível, o preço físico é alto. Alguns atletas entram em colapso. Entre eles está Cat Simpson, competidora britânica, deitada em uma maca coberta por um cobertor com duas vias de medicamento presas a suas veias.

Correr uma corrida como essa é conseguir chegar aos limites e guardar qualquer colapso para depois da linha de chegada.

Dora Papadopoulou, consultora em medicina ortopédica e medicina esportiva no Centro de Reabilitação Médica de Headley Court, no Reino Unido, trata de corredores exaustos há 10 anos. Ela lista os problemas mais comuns aos competidores: bolhas, problemas musculares e cãibras.

Apesar da punição que esse esporte radical inflige ao corpo, pesquisas mostram que a recuperação pode ser extraordinária. Um estudo recente com corredores da Spartathlon mostrou que, logo após a corrida, suas amostras de sangue pareciam às de pessoas próximas à morte, mas voltaram ao normal em poucos dias, segundo o médico Papadopoulou.

Para Simpson e outros finalistas, a corrida mais uma vez chegou ao fim. “Parece um pouco um sonho”, diz ela, “a partir de 110 quilômetros eu achava que não conseguiria sobreviver à escuridão e às tempestades”.

Afinal, ela voltará a treinar para a próxima? “Eu nunca mais farei isso, nunca”, diz.



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Sobre Iúri Totti 1379 Artigos
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. "Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer."