Espaço do Atleta: Os 100km da Patagonia Run de Alexandre Mariotto Castello Branco

Alexandre Castello Branco em um trecho da Patagonia Run 2018
Alexandre Castello Branco em um trecho da Patagonia Run 2018

San Martin de Los Andes, Argentina. 06/04/2018. 20h55m.
Lá estava eu de novo, a cinco minutos de mais uma vez encarar os 100km da Patagonia Run. Na primeira vez que fiz, em 2016, foi minha primeira prova de 100km de montanha. Eu lembrava que tinha sido difícil, mas tinha curtido bastante também e chegado até relativamente inteiro depois de quase 20 horas correndo direto. Esse ano, o percurso estava um pouco diferente, com as piores subidas concentradas na primeira metade da prova, além de uma subida “extra” que resolveram colocar lá.

Dessa vez eu estava lá por outro objetivo. Como a Patagonia Run é uma prova classificatória para o sorteio de duas provas que estou tentando muito fazer (Western States e Ultra Trail du Mont Blanc), resolvi encarar novamente esse desafio e tentar conseguir os pontos necessários para levar meu sonho adiante. O que eu não sabia é como seria duro levar esses pontinhos pra casa.
A prova teria 104km e a primeira metade, com altimetria beeeeeem acentuada e subida a três picos, seria a pior, sem dúvida nenhuma. E, ainda por cima, ela seria feita no escuro. E num frio que não estava muito nos meus planos. Lembrava do frio de 2016, mas esse ano parecia que estava pior. Aliás, isso era o que mais me preocupava. Treinado eu estava e bem confiante, mas passar frio na madrugada, no meio da montanha, não é algo que eu curta muito.
Largamos! Menos de 800m da largada já começamos a subir. Muita gente junta, bem embolado. Mas deu pra encaixar um ritmo legal, já alternando corrida com caminhada rápida nas subidas mais íngremes.
Alexandre Castello Branco em um trecho da Patagonia Run 2018
No Km 26, no PAS Colorado, tinha planejado fazer uma troca rápida de roupa pra colocar uma segunda pele seca, reabastecer a mochila e sair rápido. Em 2016, foi nesse ponto que eu mais sofri com o frio e passei um perrengue.
Eram quase 2h da manhã e, segundo a organização, estava fazendo aproximadamente -5 graus Celsius aquela hora. Sem contar num ventinho gelado que insistia em soprar. Quando me hidratei com um belo gole de água e reabasteci as garrafas que estavam frias e ficam na parte da frente da minha mochila de hidratação, a temperatura do meu corpo caiu muito e comecei a tremer. Não estava acreditando nisso.
A história de 2016 se repetia, só que dessa vez mais intensa. Fui pra frente de uma fogueira pra esquentar os atletas e a cada tentativa de sair dali eu voltava a tremer em pouquíssimo tempo. Eu estava me esquentando por fora, mas precisava me esquentar por dentro! Briguei com a tremedeira e peguei um chá quente pra beber. Fiquei nessa briga por quase 40 minutos e confesso que por alguns segundos cheguei a cogitar em abandonar, afinal ainda faltavam 80km pra terminar e, pelo menos, mais 6h correndo no frio e no escuro. Sem contar que ao meu lado, dois atletas tinham acabado de desistir e estavam com cobertores se esquentando na frente da fogueira. Tentador. Procurei me concentrar e quando a coisa melhorou um pouco, resolvi sair correndo dali e me esquentar em movimento. Era minha única chance de seguir em frente!
Nos quilômetros seguintes minhas mãos ainda estavam geladas, mas o resto estava controlado e o rápido pensamento de abandonar que tive no PAS Colorado sumiu completamente da minha cabeça.
Alexandre Castello Branco em um trecho da Patagonia Run 2018
Cheguei então em outro momento crucial da prova: o pico do Quilanlahue (1.650m), a pior e mais íngreme subida da prova. A inclinação é de mais de 45% em alguns trechos, num terreno arenoso, em que você dava dois passos acima e escorregava um pra baixo. Como ali era impossível impor uma velocidade decente, pelo menos para os meros mortais como eu, o vento e o frio bateram de novo e voltaram a incomodar. Nesse trecho também tinha bastante gente e a subida ficou um pouco travada, mas pelo menos era reconfortante ouvir os gemidos e reclamações dos outros atletas. Não era só que eu estava sofrendo ali.
O que me levava adiante era saber que depois da descida desse cume, a segunda metade da prova seria muito mais tranquila, sem nenhuma subida como essas três que fizemos no começo. O dia nasceria também e tudo seria mais “fácil”. Faltariam só mais uns 50km para o final da prova!
Quando desci o Quilanlahue, estava bem desgastado e com a moral baixa. O frio não incomodava mais e estava comendo bem, dentro do planejado, mas o tempo que perdi lá no PAS Colorado e meu avanço até ali já tinha me custado 11h de prova. E tinha corrido só 44km. Fiz umas contas rápidas e logo ali percebi que seria muito difícil, quase impossível, fazer um tempo melhor do que tinha feito em 2016 (19h21m). Bateu um desânimo e foi preciso alinhar as expectativas e reajustar minha estratégia para o restante da prova.
Resolvi que era hora de escutar um pouco de música e ouvir a minha playlist de rock, que sempre me dá um gás. Coloquei no shuffle e a primeira música que tocou foi uma do Imagine Dragons chamada “Believer”. Não sei o que aconteceu ali, mas virei bicho. Bateu uma energia, uma disposição, que eu não sabia que ainda tinha. Comecei a correr com força e senti que estava quase anestesiado, muito focado, tudo estava claro. Pulava os troncos de árvores enquanto as pessoas passavam devagar. Que sensação boa! Num trecho de 8,5km até o próximo posto de hidratação eu passei 25 atletas! Continuei nessa pegada, me sentindo bem e tentando recuperar o tempo perdido, por quase 30km.
Lá pelo km 70 comecei a ficar um pouco enjoado, talvez pelo ácido láctico que deve ter surgido com esse gás que eu dei. Tomei um copo de Coca-Cola e comi uma empanada deliciosa de queijo e presunto e voltei ao normal. Continuamos no jogo!
Fui seguindo forte e, apesar da segunda metade ser bem mais light que a primeira, ainda tinham umas subidas chatas, afinal de contas o desnível positivo total dessa prova era de 6.706m, ou seja, teria subida pra dar e vender até o final.
Ainda fazia minhas contas mas com um pouco menos de 20km restantes, percebi que não daria mesmo pra bater meu tempo de 2016 e resolvi relaxar. Meus joelhos começaram a doer também e não queria forçar ainda mais e prejudicar o resto do meu ano. Cheguei tranquilo, confesso que até emocionado pelo apoio do público nas ruas de San Martin de Los Andes. Como eles gritavam e davam força nesse quilômetro final!
Alexandre Castello Branco na chegada da Patagonia Run 2018
Fechei em 20h15m os 104km. Os últimos 60km da prova, quando comecei a ouvir música, fiz em 9h15M. Fiquei um pouco triste por não ter batido meu tempo de 2016 mas bem feliz por várias outras coisas. Em nenhum momento senti qualquer dor muscular absurda ou qualquer indício que teria câimbras. Não tive nenhuma bolha. Nenhuma! Consegui correr bem em vários trechos da segunda metade da prova, mesmo com muitos kms acumulados nas costas já.
Os aprendizados que tive nessa prova foram imensos e isso é uma das coisas que mais me deixa feliz. Parar depois da prova, rever cada detalhe e estudar e entender tudo que poderia ser feito para melhorar ainda mais para a próxima. Como eu gosto disso!
A Patagonia Run é uma prova que se tornou muito especial para mim. Apesar de ser muita dura e fazer um frio que eu não curto muito, o nível da organização e o carinho das pessoas e da cidade fazem tudo ficar mais fácil. Achei que não falaria isso, mas quem sabe em 2019 eu volto para San Martin de Los Andes para mais 100km e muitas histórias para contar?
Alexandre Castello Branco

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Sobre Iúri Totti 1379 Artigos
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. "Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer."