Espaço do atleta: relato de Carla Guerra no El Cruce 2016

A MOTIVAÇÃO

Nunca fui uma exímia corredora, quem me conhece do triathlon sabe que nado e pedalo muito bem e me arrasto na corrida…rs! Mas definitivamente é o que mais gosto de fazer, correr! Há anos vinha pensando no Cruce, cheguei a pagá-lo um ano para fazer em dupla com minha amiga Amanda Cavalheiro, mas me machuquei entre as provas de ironman e tive que abortá-lo. Todo ano o ironman em maio não me deixava pensar nele, pois acabo priorizando sempre o triathlon.
Carla antes da largada do Cruce. Arquivo pessoal
Ano passado resolvi que deste ano não passava, até porque não iria a Floripa e a meta seria o Cruce. Mas antes do Cruce tinha me inscrito para o ironman de Fortaleza, em novembro, e já tinha feito o Ultraman em abril. Nada de provas de corrida em trilha. Experiência zero nesse tipo de provas. E assim foi. Acabei Fortaleza e fui pensar no Cruce. Lembro que assim que voltei de Fortaleza conversei com o (treinador) Manuel Lago e pedi ajuda para
treinos de trilha até fevereiro, o dia do Cruce. Portanto, tinha menos de 4 meses de preparação. Minha ideia era focar nesses quase 4 meses apenas na corrida. Fiz treinos mais específicos de trilhas, subidas e descidas.
Conversei com a Marcinha (treinadora Márcia Ferreira) que o triathlon ficaria suspenso  e segui com o Manuel. Uma equipe animada, muita gente, pessoas que me deram força nos treinos em conjunto. Era engraçado. Eu até conseguia acompanhar as meninas mais fortes no asfalto, mas quando chegava na trilha ficava para trás. Fui sozinha desvendando algumas trilhas, todas novas para mim: Pedra Bonita, Vista Chinesa, uma ali no Leblon…. e assim fui tomando gosto por elas e me sentindo mais à vontade e perdendo o medo das descidas. Mesmo assim ainda travava muito nas descidas e sofria um bocado nas subidas. Mas gostei desse período!!!
PRÉ-PROVA

Chegou o grande dia!!!! Cheguei com alguns dias de antecedências a San Martin, passeei pela cidade, fiz city tour, me ambientei, comi bem, tomei cerveja artesanal…rs… E aí começou o perrengue. No dia de entregue do kit, era um passeio pela cidade. Pagava a
prova e itens adicionais em um lugar, pegava o kit em outro… era caça ao tesouro pela cidade. No dia seguinte, com todo o material na bolsa que a organização te dava e você entregava com o material para passar os 3 dias de prova. Você ia em um terceiro lugar  para entregar essa bolsa e, no dia seguinte, ainda largava em um quarto lugar. Achei um pouco
confuso isso, mas, tudo bem, deu tudo certo, mesmo tendo que pegar táxi para a bolsa, pois estava muito pesada. Uma coisa que não gostei, foi que, mesmo com tantos estrangeiros, todas as explicações eram dadas apenas em espanhol, e não em inglês.
PRIMEIRO DIA DE PROVA
A roupa para o primeiro dia ficou no hotel. Acordei cedo, tomei café junto com outros atletas, mas ninguém conhecido. Fui andando até o Lago onde era a largada não oficial. Eram 10 largadas, eu sairia na sétima. Já vi que seria ruim, pois com certeza passaria muita gente e perderia tempo. Relaxei. Estava ali para curtir.
Carla em um dos trechos do Cruce-2016
Mas não deu…rs. Meu lado competitivo logo aflorou. Comecei correndo, mas o frio na largada me fez mal. Com a respiração ofegante no início é bem difícil correr bem até voltar ao normal, o que ocorreu no Km 5, pois estava bem frio. Depois esquentou um pouco e comecei a me sentir melhor. Lá pelas tantas, comecei a subir a trilha, e ter saído atrás atrapalhou. Tive até que andar, esperar o melhor momento para me espremer para passar outras pessoas, mas mesmo assim estava feliz pois enquanto muitos já andavam eu continuava correndo. Os quilômetros passavam, as horas também e eu continuava correndo.
Carla em um dos trechos do Cruce. Arquivo pessoal
Acho que lá pela metade da prova, veio um descidão, e uma menina me passou  berrando “permisso” (licença). Pensei, vou atrás dela…rs. E fui!!! Caralho…. Ela desceu igual a uma louca e eu atrás. Pulávamos pedras, riachos, troncos, passávamos pessoas com ela berrando “permisso”. Quando chegou no plano, pensei: fudeu, amanhã não tenho quadríceps!!! Que merda que eu fiz!! Nem em treino nunca desci desta forma…afff…rs! No plano, tirei um pouco o pé do acelerador. Lá pelo Km 36, entramos na fronteira com o Chile, parada obrigatória, pensei uffa…que bom! Posso parar de correr um pouco e todo mundo tem que parar também…rs. Só que não era tão bom assim. Estava mais frio e depois do esforço até ali, com mais de 5 horas de prova. Com a parada o corpo esfriava rápido e já começava a doer um pouco e ainda ia ficar mais frio.
Num trecho de apenas 5 km, foram três paradas para preencher papelada e, para carimbar meu passaporte, foram duas vezes. Só para dizer que a prova entrou no Chile, OK ?! Tenho o passaporte carimbado do Chile de novo…rs! Os que chegaram mais tarde, foram cortados desse trecho e foram direto para a chegada da prova, não finalizando os 42km desse dia. Eu terminei, feliz, em 6h45m!!!!
Carla na fronteira da Argentina com o Chile
Depois que cheguei ao acampamento, fui para o lago frio, tomei um banho frio pra cachorro, troquei de roupa, comi e aí começou a chover. De dentro da minha barraca eu ainda via a galera chegando e eu batia papo com os brasileiros pela barraca…rs. A noite saí da barraca para jantar, conversar mais com os brasileiros, tomar um copo de cerveja e, depois, fui dormir.
Nesse dia conheci um carioca que mora em Manuas, um mexicano que fala português e que mora e trabalha em Sampa e uma menina do Sul que corria bem. Mais alguns outros brasileiros ao meu redor, como um que mora hoje nos EUA e já fez mais de 10 ironmans.
Acampamento do Cruce
Como tinha saído na onda 7 no primeiro dia, com meu tempo do primeiro dia pude pular para a segunda onda no segundo dia.
SEGUNDO DIA
Acordei de madrugada para ir ao banheiro antes da confusão começar, deu certo! Mais tarde, quando eu já estava arrumada, vi a fila dos banheiros. Tomei café dentro da minha barraca, pois tinha levado pão e requeijão e preferi não arriscar nada de diferente pela manhã. Tomei apenas um café puro da organização. Toda animada, pois não tinha muitas dores musculares. Fui para a largada, na segunda onda. Na teoria seria o dia mais fácil (e foi realmente!) e minha estratégia era me poupar um pouco para o terceiro dia. E assim o fiz!!
Carla (à direita) e amigos em uma das chegadas do Cruce
Corri bem, mas tranquila o tempo todo, sem a gracinha de descer a mil como fiz no primeiro dia. Mas uma grande subida na chegada da prova me quebrou um pouco psicologicamente e a fiz toda andando. Na verdade, acho que quase todo mundo andou! Esse dia, no acampamento, estava bem frio. Conheci um grupo de paulista bem engraçados, que estavam fazendo a maior bagunça. Adivinha??? Era triatletas !!! rs Almoçamos, jantamos, conversamos. Conheci também um mineiro e a Mariana, de Niterói. Esse dia foi bem difícil dormir com alguns graus negativos. Sair de madrugada para fazer xixi??? Nem pensar!! Alguém no dia anterior já tinha perguntado se fazíamos mais 600ml de xixi e lembrei que tinha uma garra de Gatorade cortada, que eu fazia aos pouquinhos nessa garrafa e jogava fora pelo buraquinho que eu abri na barraca. Isso sob a luz da minha lanterna, era bem complicado… hehehe, mas melhor que sair no frio do ca….
Carla dentro de sua barraca no Cruce. Arquivo pessoal
TERCEIRO DIA
Não acordei, fui acordada pelo acampamento. Difícil sair da barraca com o frio que estava, mas pelo menos não chovia. Demos sorte, ou pelo menos eu dei, pois não peguei chuva na corrida, só no acampamento, já dentro da barraca…rs. Só peguei frio.
A largada do terceiro dia foi com muito frio, zero grau, e a organização avisou que, como seria um dia de montanha e muita subida, era para ir preparado para muito frio. Foi o dia que saí com mais água e mais casaco. Já largamos subindo. Da largada dava para ver a trilha e a galera andando e subindo. Eram 4k de trilha, subindo… quando você achava que acabava, continuava subindo. Duro! Durante a subida, trechos de desfiladeiros, trechos que só se passava de fila indiana. Olhando para baixo não tinha fim, medo! Eu andava com calma e pedia calma para quem estava atrás de mim… uma parada num trecho mais planos para uma foto com o lago láaaa embaixo e continuava a subida. Ohhhh dia duro. Cheguei a me sentir mal em alguns momentos. Em determinado momento, achei que não completaria. Parei um pouco, comi e continuei a subida. Não quis parar muito nenhum dia, mesmo não estando muito bem no terceiro dia, eu não parava, ia mais devagar, mas não parava, era muita subida, mas mesmo assim via que estava bem em relação aos outros, pois as pessoas não me passavam, mesmo eu lenta. Então eu continuava subindo, subindo. Certa hora quando olhei para meu Garmim, tinha apenas 9km e 2h30m de prova. Depois olhei de novo, 12km em 3h.. PQP!!! Sim, imaginem isso ??? Imaginem as subidas ???
Uma das subidas do Cruce
Pirei!!! Pensei, isso não pode continuar assim, se são 30km, eu tenho 12km e já tenho 3hs de prova, não termino hoje…rs!!! Mas depois de muito subir chegou a hora de descer… e muito também, mais de 12km, que não fiz igual à do primeiro dia, mas foi um alívio…. Encontrei com a Mariana e o mineiro, que me acompanhou até o km 22. Conversamos e assim me distrai. No 22, era o oásis, o ponto de hidratação. Fiquei feliz ali, ufaaa. Só falta uma Lagoa, pensei !!! Vou fechar essa porra !!!! rs!! Lá encontramos o mexicano que mora em SP, super gente boa !!! A Mariana já tinha nos deixado. Comi, bebi Pepsi “arghhh”, comi banana (foi só o que comi e bebi os 3 dias nos oásis) e segui. Estava bem mais feliz nessa hora, faltava muito pouco para minha meta e tinha umas 5h30m de prova.
Ultramaratonistas em um dos trechos do Cruce
Mais algumas subidas e descidas, mas aí eu já estava acabada. Meu Garmim morreu faltando apenas 5km. Mas aí, já no plano final, cai de madura!!! Talvez pelo cansaço, cai numa areia dura e cheia de pedras. Me ralei bem, machuquei a mão, joelho, rasgou a calça. Recebi a ajuda de um gringo para levantar, me limpei e chorei muito por algum tempo… Mas coloquei a cabeça no lugar, sabia que já tinha chegado e segui andando e chorando, mas com o dever cumprido. Sabia que não seria fácil, nada nunca foi fácil para mim nessa vida. Sempre tive que estudar muito, correr atrás, me dedicar, me superar e não seria dessa vez que seria fácil !!! Continuei andando, segurei o choro e segui, faltavam apenas algumas últimas descidas…
Chegada à vista, já conseguia ver o lago Lácar, mais choro, mais uma vitória, mais um projeto completado, mais um objetivo realizado, mais uma dedicação cumprida!!! Chego na areia do lago, feliz, poucos metros me separam da chegada, vejo o pórtico, mais um sonho realizado, um El Cruce para a conta !!!! Uhuuu !!”
Carla Guerra morde a medalha após completar o Cruce-2016. Arquivo pessoal
CARLA GUERRA, triatleta e ultramaratonista

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Sobre Iúri Totti 1379 Artigos
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. "Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer."