Espaço do atleta: relato de Weliton Carius, campeão dos 100km da Ultra Fiord

“Manhã chuvosa e gelada! Todos partimos da praça principal de Puerto Natales, com destino ao Parque Nacional Torres del Paine, com os faróis do ônibus rasgando a escuridão. Foi assim o início de um sonho sem fim, chamado Ultra Fiord 100K.
Tudo passava a fazer sentido. Me encontrei num lugar nunca imaginado, entre passadas e saltos, explorei terrenos desconhecidos, o solo fazia barulho, o som dos pássaros, dos rios que fluem diretamente da montanha, até ouvir o vento, que soprava do alto da montanha branca e reluzia uma atmosfera mágica e assustadora. Neste momento, a mãe natureza me acalmou e me deu forças para prosseguir na minha interminável jornada.
O carioca Weliton Carius, campeão nos 100km da Ultra Fiord, na Patagônia chilena. Arquivo pessoal
Nos bastidores da minha preparação final, as condições climáticas para o grande dia não permitiram que o percurso fosse o mesmo que o ano anterior, o que de certa maneira apimentou os meus planos, e, simplesmente, não consegui adormecer antes que concluísse todas as adaptações e estudo para o novo percurso.
Acordei às 4h40m no dia da prova. Me preparei e saí do local onde estava hospedado. Sentia o rosto queimar de frio e logo veio a chuva. Nesse momento passou em minha cabeça um breve filme de toda a minha preparação e sonhos de conhecer a Patagônia. Já me encontrava na região da prova há 4 dias, e tive a oportunidade de ir até o Parque Nacional Torres del Paine para buscar uma provável aclimatação, mas foi em vão, pois não consegui chegar no local exato da prova. Entretanto, explorei o parque juntamente com um grupo de turistas que acessavam o parque através de uma agência de turismo, que fica localizada em Puerto Natales.
Senti mais frio do que qualquer pessoa. Debaixo de toda aquela chuva, me abriguei até a chegada dos ônibus e partimos para uma corrida, que na verdade era um sonho. Me acomodei nas últimas poltronas do ônibus e do meu lado sentou-se um senhor colombiano e conversamos um pouco. Logo dormimos e só fomos acordar nas proximidade do local da largada da prova. Todos desceram do ônibus enquanto eu me preparava para o frio que era constante, juntamente com o colombiano que neste momento disse: “Último a sair do ônibus e primeiro a chegar na corrida.”

Estávamos nas dependências do hotel Rio Serrano e encontrei dois amigos brasileiros que me deram forças e me motivaram para encarar a largada. Saí e fui fazer um breve aquecimento e pedir forças divinas para a largada. Logo fomos chamados para dar início à prova e lá estava eu, medindo os meus passos para não cometer nenhum erro, atrás do pelotão da frente. Logo fomos reduzidos a apenas 3 atletas: um atleta canadense; meu compatriota Fernando Nazário (campeão da edição anterior) e eu.
Percorridos 10km de prova aproximadamente, o atleta canadense fugiu do nosso campo de visão. Em seguida ultrapassei o Fernando, e, durante a busca solitária, procurei uma maior interação com aquele tipo de floresta inigualável e grandiosa. A serrapilheira estremecia ao pisar no chão, as raízes das árvores eram imensas e o terreno se mostrava desafiador a cada quilômetro percorrido…
No alto da montanha, a neve era o meu maior desafio, e tive medo, mas esse sentimento não me contagiou. Diante de toda a magia que aquele local me transmitia, eu corria e parava para olhar as montanhas mais altas e para a neve que caía sobre mim. Não acreditava e, ao mesmo tempo, o desejo de prosseguir e me superar em mais essa distância me dominava. Logo fui desafiado por ventos fortes no alto da montanha e prosseguia correndo e saltando sobre as pedras cortantes e assustadoras nunca vistas antes por mim. Fui obrigado a parar pelos fortes ventos e colocar os óculos, pois não podia se enxergar. Adiante parei num ponto de apoio no alto da montanha e fiz o meu check point e perguntei pelo atleta canadense. Me informaram que ele havia passado faziam alguns minutos e logo me encorajei a prosseguir e não ficar parado no meio da nevasca.
Comecei a descer e tudo se acalmou… Cruzando um rio que brotava de uma gigante montanha de neve. Já não temia mais as nevascas que haviam ficado no alto da montanha. Me sentia seguro, porém, sentia frio e procurava correr mais forte numa série de trilhas com descidas desafiadoras. Temia cair e me machucar, mas a vontade de correr era maior. A neve continuava a cair, e me encantava. Eu me sentia uma criança realizando seu sonho. Após atravessar alguns rios, por volta do 35km os bastões de sinalização da prova me conduziram até lugares descampados. Eu tentava correr, mas meus pés afundavam e eu buscava pisar em lugares mais firmes. Não sendo possível encontrá-los, corria e parava a todo momento. Após intermináveis pântanos ou brejo, como chamam na minha terra natal.
Já no 43km pude avistar o canadense e, por um momento, fiquei observando o ritmo que ele estava correndo. Logo me aproximei e ele me cedeu a ponta da prova. Naquele momento tive a oportunidade de liderar a prova pela primeira vez . Por alguns quilômetros ficamos nos revezando até chegarmos à Estância Perales, onde ficamos mais molhados ainda, pois atravessamos um grande rio para chegar do outro lado, onde estava um ponto de apoio com nossas bolsas (drop bags), com parte de alguns equipamentos extras e reservas de alimentação.
No próprio ponto de apoio havia toda uma estrutura para os atletas e cuidado conosco. Os staffs ofereciam ajuda o tempo todo frutas, comida, isotônico e água. Troquei de tênis rapidamente e coloquei meias secas. Tinha planos de trocar de roupa, porém não podia perder tempo. Comi parte de uma quentinha (arroz, linguiça e ovos), pois até então havia me alimentando de géis e alguns nuts de grãos, batata com azeitonas, e isotônico. Logo retornei para a corrida buscando nesse momento uma liderança segura e me afastar de todos os adversários.

Prossegui por estradas de terra com pedras pequenas soltas e nesse momento um sol bem tímido saiu pra me dar forças num terreno que podia imprimir um ritmo bem forte, pois nesse eu podia correr… Depois de percorrer 70km, o tempo fechou e começaram os fortes ventos e neve. Novamente coloquei um corta vento extra, luvas e toca que levei na minha mochila. Prossegui numa batalha interminável.
Nesses quilômetros finais passava nos pontos de apoio e fazia paradas bem curtas apenas para acalmar a mente e dar segurança de que tinha feito algo e afirmar pra mim mesmo que seria possível ser o campeão dos 100km. Chorava e peregrinava por intermináveis quilômetros até chegar a rota 9, local onde pude correr algumas vezes, durante a minha estadia prévia na cidade… Me senti seguro. Já não olhava mais para trás, pois até então eu sempre procurava monitorar se havia alguém no meu campo de visão se aproximando de mim…
O sonho continuou e cruzei a linha de chegada, embaixo de neve. Comemorei e realizei mais um sonho que, para mim, já tinha sido um precioso prêmio comparado com a vontade de cruzar a linha de chegada como primeiro colocado dos 100 quilômetros, em 10h38m – Fernando Nazário terminou em segundo lugar, em 10h49m, e o canadense Robert Etienne ficou em terceiro,  em 10h55m. Que foi o sonho de ver a neve e conhecer a Patagônia chilena, que antes só tinha visto através de inúmeras edições do “Globo Repórter”, bem como em pesquisas e livros.”

Weliton Carius

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Sobre Iúri Totti 1379 Artigos
Iúri Totti é jornalista, com mais de 30 anos de experiência na grande imprensa, principalmente na área de esportes. Foi o criador das sessões “Pulso” e “Radicais” no jornal O Globo. Tem 13 maratonas, mais de 50 meias maratonas e dezenas de provas em distâncias menores. "Não me importo em ser rápido. A corrida só precisa fazer sentido, dar prazer."

24 Comentários

  1. WELITON CAIRUS parabéns por essa linda vitória. Que venha muito mas. Vc batalhou muito por isso já te conheço abastante tempo e conheço a sua luta para chegar a mas essa vitória.

  2. WELITON CAIRUS parabéns por essa linda vitória. Que venha muito mas. Vc batalhou muito por isso já te conheço abastante tempo e conheço a sua luta para chegar a mas essa vitória.

  3. Weliton, very well written! You ran an amazingly strong race! I’m glad we got to share some parts of this wild race together! I will be following your journey very closely, and hope that we get to compete together again soon!
    The Canadian runner
    Etienne

  4. Weliton, very well written! You ran an amazingly strong race! I’m glad we got to share some parts of this wild race together! I will be following your journey very closely, and hope that we get to compete together again soon!
    The Canadian runner
    Etienne

  5. Parabéns Weliton !!! Muitos Treinos e sacrifícios para chegar a alto do podium , que venham muitas vitórias, Abcsss

  6. Parabéns Weliton !!! Muitos Treinos e sacrifícios para chegar a alto do podium , que venham muitas vitórias, Abcsss

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